segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A impropriedade da exigência do prévio recolhimento do ICMS em processo de desembaraço aduaneiro para consumo e àqueles destinados aos regimes especiais.

 Cláudio Luiz Gonçalves de Souza

Inicialmente, devemos relembrar que a incidência do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação, desde sua previsão constitucional e disposição em resoluções do Senado, e respectivas leis complementares e outros diplomas nacionais e estaduais, tem sido alvo de constantes questionamentos, mormente quando a matéria diz respeito aos temas relacionados com o comércio exterior e, em especial, o desembaraço aduaneiro na importação.

Em face disso, registra-se que não são poucas as polêmicas de natureza doutrinária, assim como contendas estabelecidas entre as autoridades fiscais e alguns contribuintes ainda vem sendo suscitadas sob os mais diversos ângulos, ou seja,  formais e materiais do tributo.

Por exemplo, ainda hoje, se discutem temas, relacionados às importações, a respeito da ausência de lei que determine com precisão a base de cálculo da exação; assim como a inexistência da própria materialidade, isto é, das operações realizadas no exterior; direito a crédito em operações isentas; mercadorias originadas de países membros da ALADI e MERCOSUL; bens de capital; dentre outros temas não menos relevantes.

Lado outro, a Emenda Constitucional nº 33, de 11/12/2001, publicada no DOU de 12/12/2001, trouxe relevantes alterações no Sistema Tributário Nacional, especificamente nos artigos 149, 155 e 177 da Constituição Federal.

De acordo com a indigitada Lei Complementar 87/96, em seu artigo 12º, Inciso IX, com redação atribuída pela Lei Complementar 114, de 16 de dezembro de 2002, considera ocorrido o fato gerador do ICMS nas operações de importação, o desembaraço aduaneiro de mercadorias ou bens importados do exterior.

Dessa forma, a entrega da mercadoria ou dos bens importados do exterior pelo depositário, por exemplo, deverá ser autorizada pela Secretaria da Receita Federal, por seus órgãos responsáveis pelo seu desembaraço, somente mediante a exibição do comprovante de pagamento do ICMS incidente no ato do despacho aduaneiro , salvo disposição em contrário, conforme artigo 12, § 2º, da Lei Complementar n.º 87/96.

Sendo assim, por questão atinente à administração da Secretaria da Receita Federal (SRF), o contribuinte deverá apresentar o comprovante de pagamento do ICMS ainda no despacho aduaneiro sem o que não haverá por parte da SRF nenhum procedimento tendente à liberação das mercadorias e/ou bens importados.

Com efeito, tal circunstância ainda permanece sem sentido, e a exigência do ICMS, exação de competência estadual pela autoridade federal no ato administrativo de despacho aduaneiro um tanto esdrúxula.

Não obstante, ao recorremos aos termos da Súmula 577 do Supremo Tribunal Federal de 15 de dezembro de 1976, verificaremos que a mesma manifesta-se sobre a temporalidade do Fator Gerador do imposto na hipótese de importação de mercadorias, quando assim aduz:

"Na importação de mercadorias do exterior, o fato gerador do imposto de circulação de mercadorias ocorre no momento de sua entrada no estabelecimento do importador."

Malgrado assim era o entendimento do STF, sobejamente, a Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir), posteriormente, definiu o ato administrativo do desembaraço aduaneiro como sendo o aspecto temporal da hipótese de incidência na importação sujeita ao ICMS.

Dessa forma, talvez  em face de uma possível  "aproximação" do ICMS com o fato gerador do IPI na importação, os membros do CONFAZ - Conselho Nacional de Política Fazendária sentiram-se seguros de que poderiam dotar o ICMS de natureza aduaneira e, com isso,  conseguir o aumento das arrecadações das Unidades da Federação, estabelecendo  por meio de convênios, algumas  medidas que, da mesma sorte, somente  comprovam o  desconhecimento da legislação aduaneira.

Essa circunstância ocorreu com a edição do Convênio ICMS nº 58/99 que, por sua vez, trouxe por exemplo,  o regime aduaneiro especial  de Admissão Temporária para o campo de incidência da referida exação, no momento em que autoriza aos Estados e ao Distrito Federal a conceder isenção ou redução da base de cálculo do ICMJS incidente no desembaraço aduaneiro de mercadoria ou bem importado sob o Regime Especial de Admissão Temporária.

Percebe-se claramente que o  CONFAZ, data vênia,  cometeu um grave equívoco,  e com isso também acabou por induzir os Estados ao erro quanto à determinação do aspecto temporal do fato gerador do ICMS nas operações de importação.

Lado outro, não poderíamos deixar de reconhecer que o legislador,  ao redigir a Lei Complementar nº 87/96, que adotou a figura do desembaraço aduaneiro, da mesma sorte,  não detinha pleno conhecimento dos institutos da legislação aduaneira em todas suas facetas e aplicabilidade.

Com efeito, uma coisa é considerarmos de forma geral o instituto do desembaraço aduaneiro; mas outra coisa é o  ato administrativo  do desembaraço aduaneiro para consumo.

Por uma questão de lógica, podemos concluir que se o importador deseja  o despacho aduaneiro para consumo de um bem, é porque ele o adquiriu junto ao exportador - vendedor da mercadoria.

Nesse diapasão, compulsando o que dispõem o artigo 2º da Instrução Normativa SRF nº 680/06, verificaremos que dois tipos distintos de despacho aduaneiro e de desembaraço aduaneiro, quais sejam:

1º - O denominado despacho aduaneiro para consumo da mercadoria, ou seja, que tem por fito desembaraço para consumo.  Trata-se de hipótese e circunstância que pressupõe um negócio internacional efetivo que, por sua vez, objetiva à aquisição de um bem pelo importador brasileiro; relacionando-se, portanto, a uma condição básica para a incidência do ICMS; e

2º - O reconhecido despacho aduaneiro que, por outro lado,  busca o desembaraço para a admissão da mercadoria em um dos regimes aduaneiros especiais. Nessa situação, o importador não assume a titularidade do bem importado, cujo titular encontra-se no exterior, e o bem situa-se fora do campo de incidência do ICMS.

Desse modo, percebe-se claramente que existe uma interpretação indevida, mormente quando a fiscalização estadual tributa bens que, pela natureza jurídica da operação, não se constituem em objeto de desembaraço aduaneiro para consumo e, como conseqüência, não foram adquiridos efetivamente pelo importador.

Trata-se, por exemplo, das operações de desembaraços aduaneiros destinados aos regimes especiais de entreposto industrial; entreposto aduaneiro seja de importação ou exportação; admissão temporária com redução; depósito afiançado; entre outros.

Nessa linha de raciocínio, decisões do Poder Judiciário já firmaram posição contrária ao entendimento dos fiscos estaduais na exigência do ICMS nas operações de importação, como a que a seguir colacionamos:

RESP. Nº 22.299-4 - SÃO PAULO. Trecho extraído do voto do Ministro GARCIA VIEIRA: "... Eu, na Egrégia 1ª Seção e também nesta Turma, sempre defendi, desde o início, que o 'leasing' estava sujeito ao ICMS. Agora, no caso que estamos examinando, há um detalhe importante e que vai decidir a questão a meu ver: é que se trata de 'leasing'. No 'leasing' embora possa haver uma opção de compra, no caso, a compra não se realizou, não houve venda mercantil. Não houve a venda, não incide o imposto, como tenho sustentado aqui..." (grifo nosso).

Sendo assim, entende-se que o fato gerador do imposto deve guardar absoluta relação com o conceito legal das operações relativas à circulação de mercadorias que, nas palavras do mestre Hugo de Brito Machado(1), "são quaisquer atos ou negócios, independentemente da natureza jurídica específica de cada um deles, que impliquem a circulação de mercadorias, vale dizer, que impliquem a mudança da propriedade das mercadorias, dentro da circulação econômica que as leva da fonte até o consumidor"

Não ocorrendo o fato gerador da obrigação tributária, não se tem que exigir a exação, muito menos de forma antecipada, consoante se efetua nas operações de importação de mercadorias do exterior, amparadas pelo disposto na Lei Complementar n. 87/96; mesmo não havendo circulação econômica dos bens.

Devemos ainda considerar a hipótese de uma mercadoria que mesmo liberada na repartição alfandegária não ingressar no estabelecimento do importador, como na circunstância de uma perda por exemplo, não há que se cogitar a incidência do ICMS, manifestadamente indevido, uma vez que não ocorreu a circulação econômica das mercadorias, o que de regra ocorre com as exigências tributárias antecipadas.Destarte, o correto mesmo seria a exigência e o recolhimento do ICMS nas operações de importação de mercadorias do exterior, com movimentação econômica, por ocasião de sua efetiva entrada no estabelecimento do importador; sendo registrado por meio de nota fiscal de entrada e registrados regularmente nos livros de registro de entrada da empresa importadora, em estrita obediência ao princípio da não-cumulatividade do imposto conforme definido na própria Constituição Federal, cobrado e fiscalizado pelas respectivas autoridades estaduais competentes e, mormente, sem onerar  o contribuinte importador.

Fontes de consulta:

Constituição Federal de 1988 (BRASIL)

Lei Complementar 87 de 1996 (BRASIL)

Instrução Normativa 680 de 2006 (BRASIL)

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário - Malheiros Editores - 8a Ed.

Nota

(1) MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário - Malheiros Editores - 8a Ed. - pág. 258

Elaborado por:

Cláudio Luiz Gonçalves de Souza -  Advogado. Pós-Graduado em Administração do Comércio Exterior, Metodologia do Ensino Superior. Mestre em Direito Empresarial.

E-mail: claudiosouza@tcsb.com.br

MEDIDA DE REDUÇÃO DO IPI SOB A PERSPECTIVA DO COMÉRCIO INTERNACIONAL

7/10/2011

 


Autor(a): NATÁLIA RUSCHEL
Advogada especialista em Comércio Exterior, mestre em Direito e Economia do Comércio Internacional pelo World Trade Institute.


A publicação do Decreto nº 7.567/11, que regulamenta a redução da alíquota do IPI para fabricantes nacionais de veículos que cumpram requisitos de conteúdo regional e atividades de produção no Brasil, foi recebida com críticas negativas por parte da indústria automotiva estrangeira e pela comunidade internacional em geral. Este artigo abordará os pontos controversos da medida sob a perspectiva do Comércio Internacional, discutindo possíveis questionamentos perante o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) da Organização Mundial de Comércio (OMC).

Entre as principais determinações do Decreto nº 7.567/11, as mais relevantes para a presente análise são duas das condições estipuladas para que os fabricantes possam usufruir da redução do IPI: 1. mínimo de 65% de conteúdo regional (Mercosul) na fabricação de veículos; e 2. realizar, no Brasil, pelo menos seis das 11 atividades listadas no artigo 2º, § 1º, III, "c", em pelo menos 80% de sua produção de veículos sujeitos à redução.

Lançado no contexto do Plano Brasil Maior, conforme anunciado pelo governo, o Decreto é parte das medidas tomadas com o objetivo de defender a indústria nacional e o mercado interno, a partir de incentivos à produção nacional, agregação de valor local e inovação no setor automotivo. A princípio, a medida seria benéfica para toda a cadeia da indústria automotiva nacional, uma vez que estimularia o uso de sistemas, partes e peças nacionais e regionais (Mercosul), bem como "daria um fôlego", diante da menor carga tributária, para os fabricantes nacionais que estão se sentindo lesados pelo volume significativo de veículos de baixo custo importados ou simplesmente montados no Brasil com elevado conteúdo extrazona (de fora do Mercosul). Por outro lado, a indústria automotiva estrangeira e a comunidade internacional em geral veem esse tipo de medida como protecionista, com consequências graves para o livre comércio de veículos, e aumento no preço final dos carros importados.

Quanto aos reais efeitos de tal medida, tratando-se do curto prazo, a redução da carga tributária pode influenciar em um preço final mais competitivo aos veículos produzidos no Brasil (seja pelo aumento do preço dos importados, ou pela redução no preço dos nacionais). Ocorre que o ganho de competitividade das fábricas nacionais beneficiadas não é garantido, já que a competitividade depende de vários fatores que vão além da redução temporária, ou permanente, do IPI. Os principais fatores que influenciam na competitividade em longo prazo, por exemplo, são os custos de produção e transação (incluídos o custos de transporte em território nacional), bem como investimentos em inovação, tecnologia, pesquisa e desenvolvimento. Nesse aspecto, a previsão do Decreto nº 7.567/11 que poderia estimular a competitividade da indústria brasileira no longo prazo é o requisito para os fabricantes nacionais de investimento mínimo em atividades de inovação, pesquisa, desenvolvimento e tecnologia, nos termos do artigo 2º, § 1º, III, "b". Resta saber se tal condição será devidamente implementada e contínua, independentemente da vigência da redução do IPI, prevista até 31 de dezembro de 2012 (art. 2º, caput).

Sob a perspectiva da OMC, a redução da alíquota do IPI nos termos do Decreto nº 7.567/11 poderia ser questionada perante dois princípios fundamentais: o do Tratamento Nacional e o da Nação Mais Favorecida. Não nos cabe aqui afirmar a existência de violação de normas da OMC sem antes analisar detalhadamente o objetivo da medida de redução do IPI, os termos em que a medida foi elaborada e que é aplicada, e também o impacto real da medida para os veículos importados; análise esta que não é objeto do presente artigo. Os próximos parágrafos irão apenas explicar noções gerais sobre os possíveis questionamentos.

O princípio do Tratamento Nacional, Artigo III do Gatt, consiste no compromisso dos Membros em não usar regulamentações e/ou tributos internos como forma de proteção à produção nacional e em não dar aos bens importados tratamento menos favorável do que o tratamento dado aos bens similares produzidos pela indústria nacional. Assim, em linhas gerais, os requisitos para habilitação da fábrica nacional à redução de IPI, que estão diretamente vinculados ao uso de um mínimo de 65% de conteúdo regional na produção dos veículos e à execução de um número mínimo de atividades produtivas no Brasil, poderiam ser interpretados como tratamento menos favorável aos veículos similares importados ou de pouco valor agregado no País, os quais são produzidos por fábricas estrangeiras que não se enquadram no benefício de redução do IPI.

Com relação ao princípio da Nação Mais Favorecida, Artigo I do Gatt, a questão poderia ser ainda mais interessante, pois esse princípio determina que qualquer benefício ou vantagem conferida por um Membro a bens originários de outro país deverá ser imediatamente estendida para os bens similares de todos os outros Membros da OMC. No caso do Decreto nº 7.567/11, o artigo 3º determina que o benefício da redução do IPI dado aos veículos de fabricação nacional será igualmente estendido apenas aos veículos originários do Mercosul e do México, importados por empresa habilitada. Portanto, os demais Membros da OMC não beneficiados pela redução do IPI, eventualmente, poderiam questionar a medida ao interpretarem que o princípio da Nação Mais Favorecida não foi observado.

Importante ressaltar que o aumento da alíquota do Imposto de Importação (I.I.) sobre veículos seria uma forma alternativa e legítima de proteção comercial, uma vez que essa é a única medida regulamentada pela OMC com o fim de proteção de mercados internos, pois é considerada mais transparente do que regulamentações internas esparsas. No entanto, o aumento do I.I. deve respeitar os limites negociados pelo Brasil com os demais Membros da OMC, em sua lista de compromissos. Nesse caso, a tarifa máxima de I.I. que o Brasil negociou na OMC é de 35% para a maioria dos veículos, incluindo todos aqueles sujeitos ao Decreto nº 7.567/11. Considerando que a tarifa do I.I. aplicada atualmente no Brasil a esses veículos já é a máxima de 35%, o Brasil não poderia aumentar ainda mais a alíquota do I.I. desses veículos.

O contexto internacional de crise em que as políticas públicas atuais foram formuladas ajuda a entender a iniciativa governamental das medidas, porém não justifica o descumprimento de compromissos do Brasil na OMC. A redução do IPI para fabricantes nacionais foi instituída em meio a uma crise mundial e no receio de um crescimento econômico menor do que o esperado no Brasil. Contudo, medidas protecionistas temporárias e isoladas não costumam ser eficientes no estímulo à competitividade em longo prazo, além de gerarem certo desgaste político com a comunidade internacional, seja com os Membros da OMC, ou com indústrias estrangeiras interessadas em realizar investimentos futuros no País. Enfim, no ambiente de crise internacional muitas vezes reina o princípio do "salve-se quem puder", o qual é considerado um "mal necessário" por muitos países, mas que não é sustentável. Portanto, fatores fundamentais para a competitividade da indústria nacional em longo prazo como investimentos em tecnologia, pesquisa, inovação, capacitação e infraestrutura, e, igualmente, redução geral da carga tributária, burocracia e corrupção não podem ser ignorados, nem pelo setor público nem pelo setor privado no Brasil.

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