Tramitam no Supremo Tribunal Federal – STF dois leading cases cujo desfecho poderá desonerar do ICMS a importação de equipamentos médicos por clínicas, hospitais e estabelecimentos de saúde em geral. Em ambos, o Tribunal já reconheceu a chamada "repercussão geral", o que torna tais julgamentos especialmente relevantes para o segmento, pois as decisões lá tomadas definirão necessariamente o resultado de todas as demais ações judiciais com o mesmo objeto, ajuizadas por outros contribuintes quaisquer.
O primeiro desses leading cases (RExt nº 594.996) trata da incidência do ICMS na importação por "não-contribuintes" do imposto, como é o caso dos prestadores de serviços médicos. O autor desta ação, aliás, é justamente uma clínica radiológica.
Esse assunto estava pacificado no STF através da Súmula nº 660: "não incide ICMS na importação de bens por pessoa física ou jurídica que não seja contribuinte do imposto".
A Emenda Constitucional – EC nº 33/01, contudo, alterou o cenário legislativo, inserindo na Constituição a previsão expressa de incidência do imposto estadual nesses casos, fazendo letra morta a referida súmula. Entretanto, mesmo após a EC, os importadores não-contribuintes mantiveram a pretensão ao não-recolhimento do ICMS.
Apegando-se a uma interpretação literal da emenda – cuja redação, de fato, não é das mais felizes –, sustenta-se que a alteração constitucional não autorizou o ICMS na importação por não-contribuintes. Ademais disso, dizem, a cobrança do ICMS nessa hipótese deveria ser compatibilizada com o princípio da não-cumulatividade, permitindo ao importador não-contribuinte creditar-se do imposto de modo a, de alguma forma, compensar o ônus fiscal suportado na importação.
Em alguns Estados da Federação, como o Rio Grande do Sul – de onde provém o leading case –, um terceiro argumento se apresenta. É que, após a EC, os legislativos estaduais deveriam editar novas leis "reinstituindo" o ICMS na importação por não-contribuintes, isto é, o imposto não poderia ser exigido com fundamento na lei estadual anterior à EC. São Paulo, por exemplo, promulgou lei nova 11 dias após a EC, enquanto a nova lei gaúcha foi aprovada somente no final de 2008.
É possível, até, que o STF julgue o leading case levando em consideração apenas esse aspecto da questão afeito especificamente à situação gaúcha, perdendo boa oportunidade de decidir a matéria mais ampla e definitivamente.
Espera-se, agora, que o Relator, Ministro Luiz Fux, leve o processo a julgamento. Curiosamente, outra ação com idêntica matéria (RExt nº 439.796) já teve julgamento iniciado, havendo um voto favorável ao Fisco (Min. Joaquim Barbosa) e um voto favorável aos importadores (Min. Dias Toffoli).
Assim sendo, pode-se afirmar que a questão encontra-se "aberta" no STF.
O segundo leading case a que nos referimos acima diz respeito à incidência do ICMS na importação via leasing (RExt nº 540.829). A questão, portanto, não interessa apenas ou necessariamente ao segmento médico, mas a qualquer empresa que opte por importar bens através dessa modalidade de contratação, notoriamente frequente na importação de equipamentos hospitalares.
A tese dos importadores é a de que o ICMS deve incidir somente sobre o valor da "opção de compra", montante que mensura o valor do negócio jurídico pelo qual se adquire efetivamente o bem arrendado, portanto o negócio em que há a "circulação jurídica de mercadoria" que configura o fato gerador daquele imposto.
Já os Fiscos estaduais sustentam que o fato gerador do ICMS na importação não é a circulação jurídica da mercadorias, como ocorre nas operações domésticas, mas a simples entrada do bem no território nacional, a qualquer título (compra e venda, leasing, doação etc.).
O entendimento fiscalista não procede, a nosso ver. Quando a Constituição (art. 155, §2º, IX, 'a') autoriza a incidência do ICMS "sobre a entrada de bem ou mercadoria importada do exterior", ela não pretendeu alterar ou muito menos ampliar o fato gerador do ICMS, mas apenas modificar o chamado "aspecto temporal" deste imposto.
Regra geral, o ICMS é devido no momento da saída do estabelecimento. Quando o produto é importado, por razões óbvias não é possível pretender o imposto na saída da mercadoria do estabelecimento remetente; por isso, redefiniu-se o momento de incidência como o da entrada do bem no País.
O fato gerador do imposto, contudo, permanece o mesmo, qual seja, a circulação jurídica da mercadoria. E se, no leasing (internacional ou interno), não há essa circulação, a não ser por ocasião da eventual opção de compra, o ICMS não deveria incidir sobre o valor das prestações mensais do arrendamento.
O julgamento deste leading case está até aqui empatado, com um voto pró-Fisco (Min. Gilmar Mendes) e um voto pró-contribuinte (Min. Luiz Fux). A matéria, entretanto, já foi apreciada em 2005 pleno Plenário do STF, fora do regime da "repercussão geral" (RExt nº 206.069). Naquela oportunidade, a tese do Fisco saiu vencedora por dez votos a um. Embora a composição do tribunal tenha se alterado significativamente desde então, seis Ministros que votaram com o fisco à época permanecem no tribunal (Celso de Mello, Ellen Gracie, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Ayres Britto). Em princípio, isso significaria que, a menos que um deles modificasse seu entendimento, a perspectiva seria de novo resultado favorável ao Fisco.
Noticia-se na imprensa, entretanto, que a Ministra Ellen Gracie poderá deixar o Tribunal nos próximos meses, fato que, se concretizado, favoreceria a "reabertura" dessa disputa no leading case.
Enfim, aguarda-se pelo prosseguimento desses dois julgamentos pela nossa Corte Maior. Enquanto as questões não são definitivamente resolvidas pelo Supremo, as empresas médicas, ao invés de pagarem conformadamente o ICMS nas importações, poderão resguardar seus direitos procurando o Judiciário, eventualmente depositando em juízo o valor do tributo, até a solução final do impasse judicial.
Paulo Roberto Andrade, Mestre em direito tributário pela USP; Sócio do escritório Tranchesi Ortiz, Andrade e Zamariola Advocacia,
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24/08/2011