RELAÇÃO AOS DEMAIS CASOS DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. SÚMULA Nº 65. NÃO
INCIDÊNCIA. PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA. NATUREZA. INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 5º, LXVII, DA CF.
PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. MALFERIMENTO RECONHECIDO.
1. O art. 168-A, § 1º, II, do CP incrimina o não recolhimento de parcelas devidas pela empresa, a título de obrigação
própria, de forma que não se confunde com os demais delitos de apropriação indébita previdenciária (caput e incisos I e
III do § 1º do artigo 168-A), que tutelam também interesse de terceiros, agredido pela conduta do agente que, valendose
de sua posição de arrecadador/responsável tributário, toma para si numerário que não lhe pertence.
2. Análise dos julgados que serviram de precedentes para a formulação da Súmula nº 65 deste Tribunal revela que
todos versavam sobre condutas enquadradas no art. 95, alínea d, da Lei nº 8.212/91 (cujas disposições,
posteriormente, restaram transpostas para o art. 168-A, § 1º, inc. I, do Código Penal), afastando a tese de que se
trataria de prisão por dívida sob o escorreito argumento de que a norma não incriminava a mera existência de débito
previdenciário, mas, sim, a inobservância da obrigação legal de recolher as contribuições já descontadas da folha de
pagamento dos funcionários.
3. A pretexto de restringir a tutela penal decorrente do simples inadimplemento, o legislador pátrio, no art. 168-A, § 1º,
inc. II, do CP, criou dois elementos normativos irrelevantes ("ter integrado despesas contábeis" ou "ter integrado custos
relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços"), pois retratam comportamentos que devem ser de regra
observados pelo cumpridor da lei e pertinentes à praxe comercial.
4. Na hipótese em questão, o preceito não pressupõe qualquer espécie de fraude (o que, em tese, conduziria a uma
desclassificação para o artigo 337-A do Código Penal), incriminando, na realidade, o simples inadimplemento da
obrigação principal tributária própria.
5. Não há como acolher a tese de que o Poder Constituinte vedou a "prisão civil por dívida", mas não a prisão de
natureza penal decorrente apenas (frise-se) da existência de dívida civil, pois, nesse caso, haveria uma teratológica
dicotomia, na qual a Constituição Federal veda o menos gravoso (prisão sujeita à disciplina da regras de processo civil),
mas autoriza, sem quaisquer restrições, a sujeição do devedor à sanção penal (enquanto resposta estatal a mais
gravosa de todas), tão só em virtude da inadimplência, sem que tenha o agente perpetrado qualquer espécie de artifício
fraudulento. Essa interpretação, ademais, faria tábula rasa da proteção constitucional, porquanto o legislador ordinário
poderia com facilidade burlar tal barreira atribuindo à norma punitiva a natureza criminal para que não se cogitasse de
qualquer inconstitucionalidade.
6. Portanto, o dispositivo criminal sub examen reflete violação à garantia prevista no artigo 5º, LXVII, da Constituição,
preceptivo que veda o encarceramento decorrente de dívida civil, impedindo, como corolário, que o legislador pátrio
erija o simples inadimplemento da contribuição patronal (obrigação tributária própria) à condição de ilícito penal.
7. Da mesma forma, vulnera o disposto no artigo 7º, item 7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto
de São José da Costa Rica), norma supranacional incorporada ao nosso sistema jurídico e cuja inobservância pelo
legislador pátrio acarreta a reprovabilidade internacional perante compromisso expressamente assumido junto a outras
nações soberanas.
(TRF4, ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 2002.71.04.002979-8, CORTE ESPECIAL, DES. FEDERAL PAULO AFONSO BRUM
VAZ, POR MAIORIA, D.E. 28/03/2011)