quinta-feira, 14 de junho de 2012
É necessária a constituição definitiva do crédito tributário para configurar crime de descaminho
Para configuração do crime de descaminho, é necessária a prévia constituição do crédito tributário na esfera administrativa. Com esse entendimento, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) trancou ação penal contra duas pessoas denunciadas pelo crime previsto no artigo 334 do Código Penal (CP). Segundo os ministros, é inadmissível o uso da ação penal antes da conclusão do procedimento administrativo.
Os denunciados foram encontrados com mercadorias estrangeiras introduzidas irregularmente em território nacional, sem recolhimento dos impostos devidos. Eles traziam mercadorias nos valores de R$ 12.776,48 e R$ 17.085,41. Outros dois corréus, com produtos nos valores de R$ 9.185,70 e R$ 8.350,64, também foram denunciados pelo mesmo crime, mas a denúncia contra eles foi rejeitada com base no princípio da insignificância.
Inconformada, a Defensoria Pública da União impetrou habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), sustentando que não houve prévia constituição do crédito tributário no âmbito administrativo, o que impediria o início da ação penal. O tribunal denegou a ordem, ao concluir que a constituição do crédito não seria condição de punibilidade.
No STJ, os recorrentes buscaram o provimento do recurso ordinário em habeas corpus, "para determinar o trancamento definitivo do processo penal, em relação ao suposto delito de descaminho".
Jurisprudência
O ministro relator, Marco Aurélio Bellizze, lembrou que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que "a pendência de procedimento administrativo fiscal impede a instauração da ação penal, bem como de inquérito policial, relativos aos crimes contra a ordem tributária, já que a consumação dos delitos somente ocorre após a constituição definitiva do crédito tributário".
De acordo com a Súmula Vinculante 24 do STF, não se tipifica crime material contra a ordem tributária antes do lançamento definitivo do tributo. Para Bellizze, diante dessa súmula, a constituição definitiva do crédito tributário não pode ser dispensada na configuração do delito de descaminho.
O ministro ressaltou que há na doutrina posição que considera o não pagamento do tributo suficiente para a consumação do crime de descaminho, que seria um delito formal. Mas ele discorda. "O direito penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes", afirmou.
Para Bellizze, ao tipificar o delito de descaminho, o intuito do legislador foi o de evitar o não recolhimento do imposto devido. "Quitando-se o tributo devido, descaracteriza-se o delito de descaminho", ponderou.
Procedimento administrativo
Atento à similitude existente entre o delito de descaminho e os crimes contra a ordem tributária, o STJ passou a adotar decisões no sentido de que é possível extinguir a punição pelo pagamento do tributo, nos casos de crimes descritos no artigo 334 do CP. Portanto, segundo Bellizze, é inaceitável a utilização da ação penal como forma de forçar o acusado a pagar tributo antes do fim do processo administrativo fiscal.
Segundo o voto do ministro, para que o fisco exija o valor devido a título de tributo, é necessária a realização de procedimento administrativo, para verificar o fato que gerou a obrigação, calcular o tributo devido e identificar o sujeito passivo, e, se for o caso, propor a aplicação da penalidade.
O relator ressaltou que apenas a autoridade administrativa tem competência para avaliar a existência do tributo. Além disso, o contribuinte tem o direito de discutir, administrativamente, se realmente há o tributo e, se for vencido, ele poderá ser intimado a pagar o valor devido, dentro de 30 dias.
O ministro citou que, em consulta ao site da Secretaria da Receita Federal – Seção de Controle e Acompanhamento Tributário, confirmou-se que ainda não foram avaliados os recursos administrativos apresentados pela defesa dos recorrentes. Por essa razão, a Turma deu provimento ao recurso em habeas corpus para trancar a ação penal.
RHC 31368
STJ
O direito fundamental de economizar impostos
Consultor Tributário
É logicamente insolúvel, no campo da política fiscal, a disputa entre os que privilegiam a segurança e os que preferem a isonomia, aqueles repelindo qualquer tributação extralegal, e estes justificando-a sempre que formas jurídicas diversas revistam substâncias econômicas assemelhadas.
Idealmente, porém (e sabemos que o mundo ideal não existe), esta interminável disputa ideológica não deveria espraiar-se para o Direito, pois a lei cristaliza a posição prevalecente em um dado momento, tendo autonomia frente às paixões dos que defendiam ou combatiam a sua aprovação.
E, embora a lei seja apenas o ponto de partida para a produção da norma, o processo que leva daquela a esta não é voluntarista, antes sujeitando-se a cânones hermenêuticos bem definidos. Ou, como adverte o ministro Marco Aurélio, com apoio em Bandeira de Mello: "no exercício gratificante da arte de interpretar, descabe 'inserir na regra de direito o próprio juízo — por mais sensato que seja — sobre a finalidade que conviria fosse por ela perseguida' "[1].
Exemplo desta postura superior, e por isso mesmo rara, deu o ministro Pertence, ao referendar a tributação dos servidores públicos inativos (EC 41/2003): "expresso com este voto minha tranquila convicção jurídica, embora deva confessar que poucas vezes, nesta Casa, chegar a um convencimento haja contrariado tão frontalmente a minha vontade de concluir diversamente"[2].
E o que diz o nosso Direito positivo sobre a matéria em exame?
De saída, e para ficarmos apenas no capítulo tributário, tem-se que a Constituição veda a exigência de tributos não previstos na lei (art. 150, I), define rigidamente o fato gerador dos impostos e de diversas contribuições (arts. 153, 155, 156 e 195) e erige a isonomia em limitação ao poder de tributar (título da Seção em que figura o art. 150, II), e não em fundamento autônomo daquele, invocável pelo Estado para a correção dos efeitos alegadamente indesejados da lei que ele mesmo editou.
Descendo para o CTN, deparamo-nos com a vedação expressa à tributação por analogia (art. 108, § 1º), temperada pela autorização ao legislador — mas não ao intérprete, sujeito à proibição há pouco referida — para, nos limites de sua competência (art. 110), ampliar o campo de incidência de um tributo por meio da equiparação, para fins fiscais, de diferentes institutos privados (art. 109).
Antes de prosseguirmos, rápidas definições se fazem necessárias.
Designa-se evasão fiscal a conduta do contribuinte que, por meios ilícitos, tenta eximir-se total ou parcialmente da satisfação de obrigação tributária já nascida ou ainda por nascer.
Elisão fiscal, de outro lado,é a supressão ou redução de tributo pelo impedimento da incidência da respectiva norma instituidora ou pela atração de regra benéfica, a partir da liberdade de conformação dos negócios jurídicos reconhecida pela lei privada (CC, art. 104).
Num e noutro caso, portanto, a intenção do contribuinte é a mesma (pagar menos ou não pagar nada), o que demonstra a total irrelevância deste elemento na diferenciação das categorias.
A elisão, a nosso ver, é espécie do gênero planejamento tributário, que abrange também as situações em que a vantagem perseguida, embora de índole tributária, não consiste na mitigação de um dever fiscal.
Imagine-se a compra, por pessoa jurídica, de um CDB prestes a vencer-se. O adquirente paga ao aplicador original o valor atual do título, com os juros remuneratórios já incorridos, retendo o IRRF correspondente[3] e quitando-o por compensação com créditos acumulados de IRPJ que detenha[4]. No vencimento da aplicação, recebe do banco o valor bruto desta até o momento da aquisição (pois o IRRF já foi pago), sofrendo retenção apenas quanto aos juros incidentes de então até o resgate.
Em suma, o negócio — do qual não decorrerá qualquer redução de IRPJ — proporcionará ao adquirente, que atrai para si responsabilidade tributária que doutro modo não teria, a troca por dinheiro de créditos tributários de realização difícil ou mesmo impossível (empresa inoperante).
Voltando à elisão fiscal, é inevitável concluir que, se o fato gerador da norma tributária não se verificou (ou se a hipótese da norma benéfica deveras ocorreu), a imposição do dever fiscal (ou a exclusão do benefício) só poderia fazer-se — sendo certo que estamos no campo da licitude — por analogia (ou por restrição do campo de aplicação da lei), uma e outra fundadas em norma geral antielisiva que tornasse inoponíveis ao Fisco as estruturas jurídicas adotadas com o fim exclusivo de economizar tributos.
Ocorre que tal norma não existe entre nós, e seria inconstitucional se existisse. Ao contrário, o CTN veda a tributação por analogia e, no sempre invocado artigo 116, parágrafo único, só permite ao administrador desconsiderar os atos ou negócios "praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo". Atos simulados, portanto, o que demonstra tratar-se de regra antievasiva, e não antielisiva, como testemunham Alberto Xavier[5], Sacha Calmon[6] e tantos outros.
Para suprir a inexistência de uma tal franquia para a administração, os defensores da interpretação econômica têm apelado para as mais diversas figuras, resgatadas do exterior ou de outros ramos do ordenamento: fraude à lei, abuso de direito, ato anormal de gestão, business purpose test...
Consiste a fraude à lei, prevista no artigo 166, IV, do Código Civil,na prática de atos aparentemente lícitos com o fim de driblar proibição ou imposição veiculadas em lei imperativa (divórcio para burlar a vedação de doação entre cônjuges, seguido de novo casamento). Ora, a norma tributária não é imperativa, mas condicional: o pagamento é obrigatório, uma vez ocorrido o fato gerador, mas a prática deste é facultativa, em especial quanto aos impostos.
Bem por isso, já em 1958, Homero Prates advertia contra os "intérpretes apressados, inclusive juízes e tribunais",que "continu[a]m a confundir lamentavelmente os atos propriamente simulados, em prejuízo de terceiros ou em fraude da lei e regulamentos, de caráter fiscal, do Direito Tributário, com os atos in fraudem legis — que constituem violações agravadas de normas obrigatórias ou proibitivas, de ordem pública"[7].
O abuso de direito, disciplinado no artigo 187 do Código Civil, ocorre quando o destinatário atende à letra da lei, mas "excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes" (recusa arbitrária de autorização para o casamento, para não sairmos do Direito de Família).
E qual seria o direito objeto de abuso? Para os corifeus desta tese, o direito de livre organização dos negócios do particular, pois a adoção de formas inusuais atenderia ao único objetivo de economizar tributo. Ora, a nosso ver, a busca de redução fiscal lícita — todas estas teorias assentam em tal premissa, sem a qual o caso seria de evasão, admitindo solução singela — antes realiza do que contraria o direito de livre disposição dos próprios bens, que se volta à maximização dos ganhos, certo como é que não existe um dever legal de opção pelas vias mais onerosas.
Não que o Estado deva adotar atitude passiva diante da quebra de igualdade e as perdas arrecadatórias que o planejamento tributário sem dúvida acarreta. Pode reagir, mas pelo meio juridicamente apropriado: normas antielisivas específicas para cada situação identificada, com efeitos ex nunc, cuja edição é autorizada pelo já referido artigo 109 do CTN.
Quanto aos institutos estrangeiros — e mesmo à norma geral antielisiva, onde adotada —, a jurisprudência dos diversos países revela que acabam por atingir quase exclusivamente casos que, no Brasil, seriam classificados como de simulação.
O mesmo vale para os exemplos invocados pelos arautos da fraude à lei e do abuso de direito (constituição de oito empresas com idênticos sócios, atividade e endereço para gozar do lucro presumido, v.g.).
Parece-nos que um estudo aprofundado da simulação — e sobretudo da simulação absoluta — dispensaria boa parte da complicação desnecessária que se produziu na doutrina tributária brasileira nos últimos anos.
Deveras, o simples fato de a declaração de vontade ter atendido às formalidades legais não afasta a pecha de simulação, quanto a ela não subjaza nenhuma vontade real. Foi a redução da simulação à falsidade — cujo equívoco é denunciado por José Beleza dos Santos[8] — que levou alguns a buscarem fora os instrumentos que o Direito Tributário já ofertava para reprimir situações que a todos pareciam inaceitáveis.
Mas vontade real tampouco se reduz a propósito negocial extratributário, pois a economia fiscal é oponível ao Fisco mesmo quando não seja um efeito acidental e quase indesejado das decisões empresariais do contribuinte, como anota, não sem ironia, a decisão noticiada semana passada neste espaço por Roberto Duque Estrada (Três boas notícias chegam dos Tribunais de Brasília)[9].
[1] STF, Pleno, RE nº 166.772/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ 16.12.94.
[2] STF, Pleno, ADI nº 3.128/DF, Rel. para o acórdão Min. CEZAR PELUSO, DJ 18.02.2005.
[3] IN/RFB nº 1.022/2010, arts. 37, §§ 1º e 2º, e 39, I, e § 1º, I e IV.
[4] IN/RFB nº 900/2008, art. 26, § 9º.
[5] Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001.
[6] Evasão e Elisão Fiscal. O parágrafo único do art. 116 do CTN e o Direito Comparado. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
[7] Atos Simulados e Atos em Fraude da Lei. São Paulo e Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1958, p. 322.
[8]"A simulação é um vício de formação dos atos jurídicos, a falsidade é um defeito da prova documental; a primeira supõe uma divergência intencional entre a vontade real e a declaração, a segunda uma falta de conformidade entre as declarações feitas quando o instrumento se lavrou e as que no documento se exararam..." (A Simulação em Direito Civil. São Paulo: Lejus, 1999, p. 74)
[9] CARF, 1ª Seção, Processo nº 10680.724392/2010-28, Rel. para o acórdão Conselheiro CARLOS EDUARDO DE ALMEIDA GUERREIRO, j. em 11.12.2012.
Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2012