Cláudio Luiz Gonçalves de Souza
Ao abordarmos sobre o tema concernente à liberação de mercadorias, apreendidas com o fito de exigibilidade de tributos e suas cominações penais, opino pela concessão da segurança.
Com efeito, é pacífica a jurisprudência de nossos tribunais, contando inclusive com Súmula do Supremo Tribunal Federal (STF), no sentido de somente admitir uma eventual apreensão de mercadorias, nos estritos limites da necessidade de comprovação de irregularidade fiscal, cujas evidências sejam realmente aparentes.
Dessa forma, torna-se completamente injurídica a medida de apreensão de mercadorias, quando a mesma visa meramente coagir o contribuinte interessado ao pagamento de tributos, multas e demais outras cominações que são carreadas pelo ente tributante.
Sobejamente, os agentes fiscais tributários sejam de jurisdição federal ou estadual possuem instrumentos e mecanismos que lhe garantem a discussão acerca de uma eventual irregularidade, assim como a exigência de uma exação com os devidos acréscimos e penalidades que eventualmente incidam na operação fiscalizada, no momento em que expede o competente auto de infração, sendo flagrante e desnecessária a apreensão de mercadorias para exigibilidade dos tributos.
Lado outro, é de elementar conhecimento que o crédito tributário é constituído pelo lançamento e, da mesma sorte, sabe-se que é de competência privativa da autoridade administrativa tributária proceder com o indigitado lançamento tributário. Por meio do lançamento dá-se início ao procedimento administrativo que, por sua vez, tem por fito constatar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, consoante ressai do disposto no caput do artigo 142 do Código Tributário Nacional (CTN), in verbis:
"Art. 142 - Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível."
Lado outro, o contribuinte autuado, por seu turno, tem total e inquestionável direito de insurgir-se contra as disposições do lançamento tributário, apresentando, para tanto, sua defesa ou recurso administrativo junto ao órgão da administração pública tributária competente que, por sua vez, no âmbito de algumas esferas de governo, se manifesta por meio de um Tribunal Especializado sem jurisdição, ou através de um Conselho de Contribuintes para a solução da demanda, não sendo necessário, portanto, apreender as mercadorias para efetuar o lançamento dos créditos tributários.
Em face da grande quantidade de tributos existentes no Brasil, norteados e regulamentados por uma vasta, dinâmica e complexa legislação, inúmeros são os conflitos e desentendimentos acerca da interpretação e aplicabilidade das normas tributárias, motivando discussões hodiernas na relação jurídica estabelecida entre a Fazenda Pública e as pessoas físicas e/ou jurídicas de direito privado.
Por outro lado, a apreensão de mercadorias para exigência de tributos, extrapola os limites da lei e constitui, em sua essência, abuso do poder fiscalizatório em matéria tributária. Temos que o CTN, por meio de seu artigo 78, aponta o conceito legal de poder de polícia que, por conseguinte, se manifesta da seguinte forma:
"Art. 78 - Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos."
Destarte, o que poderíamos concluir a partir do disposto na norma legal, é que o legislador pretendia com isso, buscar um equilíbrio entre a fruição dos direitos privados individuais e coletivos e o poder da fiscalização pública em benefício do bem comum. Em outras palavras, estabelecer uma harmonização necessária e, em tese, compulsória para que possa garantir a coexistência entre a liberdade individual e o Poder Público em prol da própria ordem pública e social.
Note-se que não deveria existir qualquer incompatibilidade entre os direitos individuais e/ou coletivos de natureza privada e os limites apresentados pelo poder de polícia de natureza pública; uma vez que a utilização desse último, não deveria ser oposto de maneira excessiva, ou até mesmo desnecessária.
Caso tal circunstância se afigure, temos a materialização do denominado e abominável "abuso de poder". De acordo com o escol do Mestre José Cretella Júnior (1) temos que a expressão "abuso de poder" também pode ser denominado de "desvio de poder" ou, ainda, de "desvio de finalidade". O festejado jurista indica que "desvio" é o afastamento, mudança de direção, distorção do sentido; ao passo que a palavra "poder" significaria a faculdade ou competência para decidir determinado assunto.
Logo, o "desvio de poder" ou "abuso do poder" representa o "...afastamento na prática de determinado ato; poder exercido em direção diferente daquela em vista da qual fora estabelecido".
Ainda acompanhando os ensinamentos do Professor José Cretella Júnior temos que o "desvio de poder é o uso indevido, que a autoridade administrativa, nos limites da faculdade discricionária de que dispõe, faz da 'potestas' que lhe é conferida para concretizar finalidade diversa daquela que a lei preceituara. Desvio de Poder é o desvio do Poder Discricionário, é o afastamento da finalidade do ato. É a 'aberratio finis legis'. Desvio de poder é o uso indevido que o agente público faz do poder para atingir fim diverso do que a lei lhe confere."
Na mesma linha de raciocínio, o não menos consagrado Mestre Hely Lopes Meirelles (2), trata o tema desvio de finalidade com a peculiar competência, assim se manifestando: "...os fins da Administração consubstanciam-se na defesa do interesse público, assim entendidas aquelas aspirações ou vantagens licitamente almejadas por toda a comunidade administrada, ou por uma parte expressiva de seus membros.O ato ou contrato administrativo realizado sem interesse público configura desvio de finalidade."
Também são as palavras de De Plácido e Silva (3) sobre a expressão "Desvio de Poder", quando assim preconiza: "Possui o mesmo sentido de excesso de poderes, o que demonstra a ação ou atuação de uma pessoa, no exercício de um cargo ou no desempenho de um mandato, além dos limites das atribuições ou dos poderes que lhe são conferidos".
Já para Seabra Fagundes(4), o entendimento sobre "Desvio de Poder" se traduz por ser uma "atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultado, não pode a Administração deles se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador".
Nesse sentido, o poder da fiscalização tributária deveria traduzir-se pelo exercício do Poder de Polícia do Estado, através da atuação de seus agentes fiscais em face da conduta dos indivíduos, mas primando por evitar o desvio de poder.
Ora, em respeito à própria primazia do interesse público em relação ao direito privado, não cabe ao particular se opor aos ditames da fiscalização; contudo se a mesma for conduzida de forma lícita e regular, sem nenhuma manifestação que configure inequívoco abuso de poder.
É nesse sentido que a apreensão de mercadorias para exigir o pagamento de tributos se configura, inquestionável e indubitavelmente em prática canhestra de "desvio de poder"; "abuso de poder", "desvio de finalidade" ou qualquer outra expressão similar que possa expressá-la.
Consoante dito alhures, a jurisprudência já consagrou como desvio de finalidade, a apreensão de mercadorias para a exigência de tributos, inclusive por meio da Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal que da seguinte forma se manifesta:
"STF Súmula n. 323 - 13/12/1963 - Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal - É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos".
Destarte, quando existem divergências de entendimento entre o contribuinte e o agente fiscalizador acerca de uma classificação tarifária para efeito de exigência do imposto de importação; ou quando se discute a legitimidade de exigir a retenção do ICMS em decorrência de um Convênio do CONFAZ por exemplo; ou outra circunstância semelhante que implique na exigência de uma exação, não pode o agente fiscal se valer da apreensão da mercadoria para exigir o pagamento do imposto;mesmo porque não se sabe ao certo ainda se o fisco tem razão em sua interpretação.
Ademais disso, o exercício do poder de fiscalizar pode ser efetivado independente de autorização judicial, existindo, para tanto, a executoriedade das decisões de fiscalizar, desde que respeitados os direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal.
Desse modo, temos que a relação estabelecida entre os agentes fiscais e o contribuinte, no que se concerne ao efetivo exercício da fiscalização em que o primeiro pode e deve exercer em relação ao segundo, encontra supedâneo no que dispõe de maneira sintética os artigos 194 a 200 do Código Tributário Nacional.
Depreende-se do caput do artigo 194 do CTN que "a legislação tributária, observando o disposto nesta lei, regulará em caráter geral, ou especificamente em função da natureza do tributo de que se tratar, a competência e os poderes das autoridades administrativas em matéria de fiscalização da sua aplicação".
Em outras palavras, significa dizer que a competência e os poderes das autoridades administrativas tributárias devem, ou pelo menos deveriam, estar adstritas aos regramentos estabelecidos pela legislação tributária, e de forma alguma extrapolá-los.
Desse modo, ao se tratar das competências das autoridades fiscais, o poder que a eles são conferidos ressaem-se na exata medida em que o legislador considera necessária para o efetivo e eficiente exercício das atividades de fiscalização e arrecadação, levando-se em consideração as características e particularidades de cada exação, mas sem abusar do poder fiscalizatório que lhes são atribuídos.
Conclusão
Como conseqüência do excesso de tributação a que os contribuintes brasileiros encontram-se sujeitos; assim como das inúmeras e infindáveis obrigações acessórias, sem contar a interpretação unilateral do fisco no uso de seu poder discricionário, muitas vezes sanções políticas são impostas pela Poder Fiscal com o fito de coibi-los ao pagamento dos tributos.
Destarte, a apreensão de mercadorias se constitui na forma clássica de se impor uma sanção de natureza política contrariando inúmeros preceitos de caráter constitucional. De acordo com o que dispõem o artigo 5, Inciso II da Constituição Federal "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", e dessa forma apreender mercadorias é "contra legem", uma vez que não previsto em lei a possibilidade de apreender mercadorias para exigir pagamento de tributos.
Do mesmo modo, dispõem o artigo 5, Inciso XXII também da Constituição Federal que ´é garantido o direito de propriedade", e a apreensão de mercadorias para exigir tributos, além de se constituir em um desvio de finalidade do Poder Fiscal, inibe o contribuinte de dispor dos bens de sua propriedade, ferindo de morte seu direito, porquanto deixa os bens indisponíveis, prejudicando ainda a terceiros interessados.
Se não bastasse, o artigo 5, Inciso XII da Constituição Federal determina também que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais", e dessa forma ninguém poderá ser punido, excerto pela lei e, apreender mercadorias para a exigência de tributos representa indubitavelmente uma sanção de natureza política e evidente abuso de poder.
Da mesma sorte, as garantias constitucionais da livre iniciativa dispostas no caput do artigo 170 da Constituição Federal, bem como a garantia do livre exercício de qualquer atividade econômica insculpida no parágrafo único do mesmo dispositivo constitucional são violados, na medida em que a autoridade tributária apreende mercadorias para exigir o pagamento de tributos.
É sabido que ao Poder Fiscal Tributário é conferida uma extensa gama de poderes objetivando seus propósitos arrecadatórios, com o fito de aumentar os recursos para o erário e permitir a manutenção estrutural da máquina pública, muitas vezes exacerbada, sob a égide do benefício do interesse comum.
Todavia, estes poderes ancorados no na faculdade discricionária, colidem com algumas disposições constitucionais, consoante mencionado anteriormente, uma vez que alguns atos administrativos fiscais não respeitam aos princípios básicos do Estado Democrático de Direito, muitas vezes por se apresentarem de forma desarrazoada, desproporcional, eivados de ilegalidade ou ainda sem nenhuma motivação adequada, como é o caso da apreensão de mercadorias para exigência do pagamento de tributos.
Sendo assim, essas medidas se configuram como indiscutível abuso de poder ou desvio de finalidade, com o único propósito de alimentar ainda mais a sanha arrecadatória; sendo dever do Poder Judiciário corrigir essa anomalia, declarando-as nulas de pleno direito.
Referências
BRASIL. Código Tributário Nacional. Vade Mecum. Org. Antônio Luiz de Toledo Pinto; Márcia Cristina Vaz dos Santos e Lívia Céspedes. 7. ed. São Paulo: Saraiva, p. 709-749, 2009.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum. Org. Antônio Luiz de Toledo Pinto; Márcia Cristina Vaz dos Santos e Lívia Céspedes. 7. ed. São Paulo: Saraiva, p. 1-125, 2009.
Notas
( 1) CRETELLA Jr., J. Direito administrativo brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 545-551.
( 2) MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
(3) SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense,2002.
Elaborado por:
Cláudio Luiz Gonçalves de Souza - Advogado. Pós-Graduado em Administração do Comércio Exterior, Metodologia do Ensino Superior. Mestre em Direito Empresarial.
E-mail: claudiosouza@tcsb.com.br