Entre as novidades está a opção de as empresas serem processadas criminalmente ou até mesmo fechadas
Cláudia Bredarioli
cbredarioli@brasileconomico.com.br
As propostas de mudanças e ampliação do Código Penal que agora se tornaram Projeto de Lei para passar pela avaliação do Senado Federal exprimem muito da evolução da sociedade brasileira desde o início da vigência do texto atual, em 1940. Reflexo, ainda que parcial, das atuais necessidades legais na área criminal do país, o novo documento amplia a responsabilidade das empresas por seus atos. Pela primeira vez, permite que as pessoas jurídicas sejam processadas e punidas em razão de prejuízos que venham a causar à sociedade. Para o advogado criminalista Técio Lins e Silva — um dos 14 membros da comissão que durante sete meses trabalhou no desenvolvimento da nova proposta do Código —, apesar de polêmicas, as mudanças são um avanço. "Agora essas sugestões passarão pelo crivo do Congresso e de toda a sociedade", diz. "Depois desse processo, o novo texto deverá ter menos contradições do que as que o documento apresenta atualmente, já que foi elaborado em conjunto, por pessoas com diversidades de pensamentos e de maneiras de ver o mundo e as leis".
Das novas medidas inseridas no projeto de lei, quais são as que mais vão afetar as empresas?
Nos crimes contra a ordem econômica há uma novidade polêmica que é a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Isso é uma confusão. Porque a pessoa física pode ser mandada para a cadeia, mas a pessoa jurídica, não. Atualmente, os gestores da pessoa jurídica podem ir para a cadeia, mas não dá para prender a pessoa jurídica propriamente, colocando um muro ou vários cadeados, com um guarda tomando conta do quarteirão.
Não há penalização na lei atual?
Hoje a pessoa jurídica não sofre nada, quase não tem como ser penalizada. Mas há algumas propostas no projeto do Código para tratar dessa questão, com limitação de crédito, impedimento de participar de licitações, de ser contratada pelo poder público, etc. Enfim, a pena imporia algumas restrições à vida societária da empresa. A empresa pode não ter honra, mas tem crédito, e perder a credibilidade será um prejuízo.
As novas regras para punição do enriquecimento ilícito também mexem com as empresas?
Sim. O enriquecimento ilícito é outra questão polêmica dentro dos crimes contra a ordem econômica. Na definição dessa questão há também um pouco de importação de uma noção que está na legislação portuguesa. A polêmica é que o enriquecimento ilícito pressupõe um crime antecedente que gerou aquela fortuna. Mas a lei esquece o antecedente e pune só o consequente. Eu votei contra essa proposta, mas ela foi inserida. E, só para deixar claro, em maio, o Tribunal português também julgou isso inconstitucional.
Qual será o próximo passo?
Agora esse projeto está no Senado, vai passar pela Câmara, pela presidente da República. Enfim, tem um processo legislativo muito longo. Tem que ter audiência pública. Isso deve começar a andar em 2013 no Senado, em 2014 na Câmara, em 2015 há a audiência pública... Enfim, não dá para prever. Mas é preciso reconhecer que uma codificação não pode ser feita por medida provisória. Tem que ser maturada, expressar a vontade social.
O Código mexe com a própria classe jurídica, com a sociedade como um todo?
Claro. O Código mexe com tudo. Justamente por se um código de conduta, ele vai fazer as pessoas pensarem sobre que conduta consideram digna. Nem toda indisciplina é penalmente punível. Pequenas indisciplinas têm que ser punidas administrativamente. O difícil é equilibrar isso na democracia. É tirar do Código Penal dessa função horrorosa de fazer controle social e ser um código de conduta, limitá-lo ao que podemos chamar de direito penal mínimo. Falar nisso às vezes parece uma agressão, mas eu acho que o direito penal tem que ser mínimo.
Qual seria um exemplo disso? Por exemplo, o Código de Trânsito tinha normas penais. Uma delas é que, se você bater seu carro em outro parado, mesmo que vazio, e for embora, isso é crime, com pena de prisão. É um absurdo, mas está lá. A prisão não vai ressarcir o bem, que seria o essencial nesse caso. Há uma tendência histórica de fazer controle social com a lei penal. O Direito Penal tem a tradição de ser poderoso. As classes dominantes usam a lei penal para impor sua dominação. Isso é histórico em todo o mundo capitalista.
Essas questões apontam uma visão mais humana da Justiça?
Esse projeto tem grandes novidades em relação ao código vigente. O novo Código Penal passa a ser uma referência para o cidadão, para o juiz, para todo mundo. Com isso, os 300 artigos do texto atual viraram quase 600. Mas está tudo ali. No novo Código Penal temos todo o roteiro para tratar o crime no Brasil.
O novo texto é reflexo de uma evolução da sociedade brasileira?
O projeto é produto de uma comissão inicialmente composta por 16 profissionais — apelidada de comissão de juristas —, dos quais dois não permaneceram e a ela de fato ser formou com 14. Foi composta ecleticamente entre magistrados, membros do ministério público e advogados. Eclética também na maneira de pensar. Por exemplo, em geral os membros do Ministério Público têm uma visão menos generosa do mundo. Eles pensam que são os gestores da moralidade, mas também são mais duros, alguns deles ainda acreditam na pena privativa de liberdade, acreditam na cadeia como método de socialização e correção do mundo. Enfim, eles ainda têm essas ilusões que eu não diria infantis, mas que perduram e que são ilusões do pensamento humano no meu ponto de vista. Eu não cheguei ainda na idade de ser abolicionista, de propor a abolição da pena privativa de liberdade. Mas estou a caminho dela a passos largos. ¦
Texto do projeto dá prioridade à liberdade
Crimes contra o patrimônio devem perder espaço na codificação
Em uma tentativa de humanizar as penas para crimes leves, o texto do novo Código Penal também reduz a importância que o documento atual dá aos crimes contra o patrimônio, priorizando a liberdade, conforme destaca Técio Lins e Silva. A nova proposta para o Código Penal é uma evolução na sugestão das penas e no tratamento dos presos? É preciso acabar com essa mística de que tudo é prisão. Eu sou contra prisão. Esse código é um estágio de um processo histórico. Estamos cumprindo um pouco desse rito de passagem. É preciso pensar que a prisão é uma coisa extremamente positiva quando ela substitui a pena de morte e a tortura. Ela é um avanço extraordinário, mas ela já cumpriu seu papel. A prisão humanizou o processo de penalização. O Código atual não prioriza esse papel? Nosso atual Código Penal é fascista na sua essência. No Código em vigor é possível ver o retrato das corporações. Os crimes contra a liberdade individual são tratados com peninhas muito pequenas. O que é importante no Código vigente é o patrimônio. O que é desimportante é a liberdade. Isso muda agora? Isso muda. Trabalhei para isso, sendo até alvo de alguma ironia, porque eu estava propondo aumento de pena pela primeira vez nas discussões. Mas que fique claro que eu estava propondo aumento de pena para os crimes praticados contra a restrição da liberdade. Coisa que no vigente Código Penal brasileiro é tratada de maneira secundária. ¦ C.B.