Jus Navigandi
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Publicado em 09/2012
1 Introdução
O presente artigo constitui um reforço de argumentação a trabalho anterior que publicamos sobre o mesmo tema[1], após maiores reflexões por ocasião de recente palestra que tivemos a honra de proferir na I Jornada de Direito Penal da Escola de Magistratura Federal da 1ª Região[2].
A tese central que buscamos aperfeiçoar assevera que o descaminho (CP, art. 334, caput, 2ª parte) é crime material contra a ordem tributária, não havendo justa causa para a ação penal nos casos em que tenha ocorrido o perdimento administrativo da mercadoria sem lançamento do tributo, em coerência com a política criminal brasileira no tocante à ordem tributária e o entendimento adotado pelo STF no HC 81.611/DF e na Súmula Vinculante 24.
A jurisprudência segue conflitante no que concerne a sua natureza jurídica, a começar pelo fato de o descaminho não ter sido tipificado como um crime contra a ordem tributária (Lei 8.137/90), mas, sim, em capítulo específico do Código Penal que trata dos crimes contra a administração pública, visando supostamente à proteção de outros bens jurídicos que não a mera arrecadação de tributos. E mesmo para os que consideram o descaminho como um crime contra a ordem tributária, a divergência persiste sobre tratar-se de crime formal ou material, havendo certa inclinação jurisprudencial e doutrinária pela primeira hipótese.
Tais divergências acarretam implicações na incidência ou não do regime jurídico já reconhecido aos crimes fiscais, basicamente sob dois aspectos: i) necessidade de prévio esgotamento da via administrativo-fiscal (lançamento em definitivo) como elemento objetivo do tipo penal ou condição objetiva de punibilidade, consoante decidiu o STF em 10/12/2003 (HC 81.611-8/DF), entendimento que deu origem à Súmula Vinculante 24; ii) extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo ou suspensão da pretensão punitiva em caso de parcelamento de tributo (art. 9º da Lei 10.684/2003).
O cerne da questão está em saber se uma pessoa acusada de descaminho (que, geralmente, tem toda a sua mercadoria sumariamente apreendida e confiscada pelo órgão fazendário, sem opção de pagamento dos tributos correspondentes) deve de logo responder a um processo criminal, enquanto grandes sonegadores (que muitas vezes se valem de complexos esquemas fraudulentos para esquivar-se das obrigações fiscais, inclusive com emprego de "laranjas") somente respondem criminalmente após o lançamento em definitivo do tributo e, ainda assim, com a oportunidade de efetuar a qualquer tempo o pagamento da dívida tributária, livrando-se da responsabilidade criminal.
Um argumento pautado na busca por justiça e equidade, conforme os ditames constitucionais, já seria suficiente a conferir um tratamento isonômico ao descaminho, em relação aos demais crimes tributários. Não bastasse isso, a solução aqui defendida encontra fundamento jurídico na própria legislação, bem como em parâmetros traçados pela jurisprudência, apesar da resistência dos que enxergam, nessa solução, uma porta aberta à criminalidade fiscal.
Mas antes de enunciarmos as premissas da tese exposta, cumpre-nos provocar o leitor a uma breve reflexão preliminar: será que eventuais críticas dirigidas a nossa conclusão não deveriam, na verdade, voltar-se contra a política criminal adotada no Brasil em relação aos delitos materiais contra a ordem tributária e o atual posicionamento do STF?
Uma sincera resposta a esta indagação talvez ajude a perceber que o pano de fundo dessa resistência teórica pode estar refletindo um inconformismo com todo o sistema e não propriamente com um aspecto pontual dele.
A incansável luta jusfilosófica em se apontar um método de conhecimento próprio que afirme o Direito enquanto ciência moderna, para além de um mero modelo subjetivista de justiça, demanda que haja ao menos lógica nos fundamentos do sistema jurídico. Em última palavra é o que aqui se busca: coerência.
2 Insuficiência do argumento legal-topográfico.
O fato de o descaminho estar tipificado em capítulo do Código Penal que trata dos crimes contra a administração pública obviamente não é suficiente a concluir que deva merecer tratamento jurídico diferenciado dos demais crimes contra a ordem tributária atualmente previstos na Lei 8.137/90.
Primeiro por uma razão histórica, porque à época da edição do Código Penal de 1940 ainda não havia tipificação geral dos crimes contra a ordem tributária, existindo apenas o tipo do art. 334 referente ao contrabando e descaminho. Naquele tempo, as condutas violadoras da ordem tributária somente poderiam mesmo ser enquadradas como crimes contra a administração ou talvez como estelionato ou falsidade.
Somente com o advento da Lei 4.729/65 a matéria passou a ser tratada em legislação penal específica, porém ainda assim o legislador optou por manter a tipificação do descaminho no art. 334 do CP, alterando apenas a redação do texto original com a inclusão de parágrafos. Essa topografia não foi alterada pela Lei 8.137/90.
Em segundo lugar, o argumento legal-topográfico cai por terra na medida em que outros tipos penais vieram a ser também inseridos na redação do Código Penal, não obstante lhes tenha sido conferido o tratamento jurídico comum a todos os crimes fiscais. É o que ocorre, v.g., com a sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do CP, introduzido pela Lei 9.983/2000 no mesmo capítulo dos crimes contra administração pública) e a apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, no capítulo dos crimes contra o patrimônio). Saliente-se que, antes da introdução deste dispositivo no Código Penal, a tipicidade da conduta se dava nos termos da referida legislação penal especial (art. 1º, I, da Lei 8.137/90 c/c art. 95 da Lei 8.212/91).
Não é a localização do tipo que define a natureza do crime tributário, mas sim o bem jurídico que se busca prioritariamente tutelar com a norma penal. Logo, nada impede que um crime contra a ordem tributária encontre a sua tipificação no texto do Código Penal, assim como existem legislações especiais tipificando delitos que poderiam ser genericamente classificados como crimes contra a administração pública, citando-se, por exemplo, os tipos previstos na Lei de Licitações (Lei 8.666/93).
3 O descaminho como um crime contra a ordem tributária
Para a adequada classificação da norma criminal com base no bem jurídico prioritariamente tutelado, sobretudo nos chamados crimes complexos – que "são em geral crimes pluriofensivos por lesarem ou exporem a perigo de lesão mais de um bem jurídico tutelado"[3] – deve-se observar o elemento subjetivo do tipo penal segundo a teoria finalista da ação. O latrocínio, por exemplo, apesar de ser um crime hediondo que viola também o bem jurídico vida, encontra-se tipificado no Código Penal no capítulo dos crimes contra o patrimônio (art. 157, §3º, 2ª parte), razão pela qual não é considerado como da competência do tribunal do júri (Súmula 603 do STF).
Ao se examinar o tipo penal do art. 334 do CP (caput, 2ª parte), com atenção ao elemento subjetivo do tipo, constata-se que o bem jurídico prioritariamente tutelado é o mesmo dos demais crimes fiscais, ou seja, a ordem tributária, consubstanciada num ambiente de regular arrecadação de receitas estatais para fazer frente às necessidades coletivas, bem como, em alguns casos, assegurar interesses públicos extrafiscais. De certa forma todos os crimes contra a ordem tributária são pluriofensivos, pois, do aspecto fiscal, protegem a administração pública, o comércio, a indústria nacional, a livre concorrência e outros interesses difusos, o mesmo se podendo dizer dos crimes contra a ordem econômica (Lei 8.176/90) e contra a ordem financeira (Lei 7.492/86). O que importa verificar é o bem jurídico prioritariamente tutelado, com destaque para o referido núcleo do tipo, que no caso dos crimes contra a ordem tributária concentra-se na vontade deliberada de fraudar a arrecadação fiscal.
O caput do artigo 334 do Código Penal descreve a conduta proibida nos seguintes termos:
A segunda parte do dispositivo refere-se ao tipo legal do descaminho, enquanto a primeira parte tipifica o contrabando.
Uma simples leitura do texto legal permite inferir que, enquanto no contrabando a vontade deliberada do agente visa a introdução de mercadorias proibidas no país – as quais, portanto, não têm como ser importadas ou exportadas regularmente –, no descaminho o elemento subjetivo do tipo concentra-se apenas na sonegação de tributos aduaneiros que podem ser pagos, mas não o são. Vale dizer, no contrabando a irregularidade está na própria importação ou exportação, ao passo que no descaminho se pratica uma fraude na arrecadação fiscal, sem o que a importação ou exportação poderia ocorrer regularmente.
Daí afirmarmos não haver diferença substancial entre os núcleos do tipo na sonegação fiscal prevista no art. 1º da Lei 8.137/90 ("suprimir ou reduzir tributo") e no descaminho ("iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto").
Descaminho é uma espécie de crime contra a ordem tributária, ao lado de outros delitos. Segundo aponta a doutrina,
É, fundamentalmente, um ilícito de natureza fiscal, lesando somente o erário público - particularmente a aduana nacional -, constituindo, numa linguagem não-técnica, um contrabando contra o fisco.[5]
A discussão sobre a natureza tributária do crime de descaminho é antiga no Brasil. O tema esteve sempre presente quando da exegese conferida a dispositivos legais prevendo o benefício da extinção de punibilidade nos crimes fiscais, sendo que, ainda durante a vigência do Decreto-lei 157/67, tratando da extinção de punibilidade em relação a todos os crimes envolvendo dívidas tributárias[6], o STF editou a Súmula 560 reconhecendo que o benefício haveria de ser aplicado também ao crime de descaminho.[7]
Em voto proferido num dos precedentes que deu origem ao enunciado (RE 76.071-RN), o ministro Bilac Pinto assim considerou:
No mesmo feito, assim se manifestou o ministro Rodrigues Alckmin:
Convém transcrever, também, os judiciosos argumentos do ministro Aliomar Baleeiro naquela mesma oportunidade:
Esse entendimento, majoritário à época do DL 157/67, bem revelou a identidade de bens jurídicos protegidos tanto na imputação de descaminho quanto nos crimes de sonegação que eram tratados na Lei 4.729/65, não obstante tenha depois a Lei 6.910/81 afastado o benefício penal em relação àquele.
Posteriormente, os Decretos-Lei 2.446/88 e 2.457/88 passaram a admitir a extinção de punibilidade pelo pagamento de tributo no crime de descaminho, porém apenas para as situações envolvendo veículos automotores e bens de capital. Esta violação ao princípio da isonomia foi rechaçada pela jurisprudência, que apressou-se em assegurar o benefício penal em todas as hipóteses de descaminho, como se infere do seguinte julgado:
Com a edição da Lei 8.137/90, previu-se uma regra geral de extinção de punibilidade para os crimes contra a ordem tributária (art. 14). Apesar de o legislador não ter feito aí menção ao descaminho, permaneciam em vigor os referidos DL 2.446/88 e 2.457/88, situação que somente teve fim com a edição da Lei 8.383/91, cujo art. 98 afastou todos os casos de extinção de punibilidade.
Não demorou muito até que a Lei 9.249/95 (art. 34) reintroduzisse em nosso sistema o benefício penal pelo pagamento do tributo nos crimes previstos nas Leis 8.137/90 e 4.729/65, antes do recebimento da denúncia. A Lei 9.964/2000 (art. 15), por sua vez, contemplou a suspensão da pretensão punitiva nos casos de parcelamento (REFIS), inclusive na sonegação previdenciária (Lei 8.212/91). Depois disso, a Lei 10.684/2003 (art. 9º) manteve a suspensão da pretensão punitiva nos casos de parcelamento, inclusive nos casos de apropriação indébita (CP, artigos 168-A e 337-A), admitindo a aplicação do benefício a qualquer tempo, mesmo após a condenação. Na mesma esteira vieram as Leis 11.941/2009 e 12.382/2011.
Em nenhuma dessas legislações posteriores à Lei 9.249/95 houve menção ao descaminho, o que, todavia, não impede que a regra de extinção da punibilidade lhe seja também aplicada, ainda que por analogia, conforme já feito pelo STF na década de 70. Deveras, parece-nos que a mesma razão de tratamento isonômico que justificou a edição da antiga Súmula 560 deve agora prevalecer, mormente em vista dos ditames igualitários da Carta Magna de 1988, não havendo razão jurídica para se diferenciar o descaminho e os demais crimes de natureza fiscal, conforme será ventilado em tópico posterior desse estudo.
Já foram editados alguns precedentes do STJ caminhando na linha do entendimento aqui defendido, como se infere no teor das seguintes ementas:
Reforçando esta tese, podemos ainda mencionar as recentes decisões do STF considerando que o tipo penal do descaminho não incide nas situações em que o valor tributário envolvido torna dispensável a cobrança fiscal, aplicando-se, por conseguinte, o princípio da insignificância.[8] Assim foram julgados diversos casos em que o montante estimado dos tributos respectivos não ultrapassou a cifra de R$ 10 mil, haja vista que a legislação prevê o arquivamento das execuções fiscais abaixo desse limite (art. 20 da Lei 10.522/02, com a redação dada pela Lei 11.033/04). Atualmente, tal patamar mínimo para a execução fiscal está fixado em R$20 mil, com base na Portaria 75/2012 do Ministério da Fazenda.
Dita aplicação do princípio da insignificância nas hipóteses de descaminho, tendo por base o valor equivalente ao tributo iludido, faz sobressair bem a natureza patrimonial do bem juridicamente protegido, quando se sabe que a jurisprudência tem afastado a aplicação deste princípio nos casos em que a lei penal protege valores não patrimoniais[9].
O STF não vem admitindo a aplicação do princípio da insignificância nas situações de contrabando (mercadoria proibida), fundamentando não tratar-se aí de delito puramente fiscal[10]. A contrario sensu, portanto, é de se concluir que a nossa Suprema Corte considera o simples descaminho como um delito puramente fiscal.
4 O descaminho como um crime material
Tal como ocorre com as modalidades de sonegação fiscal tratadas no art. 1º da Lei 8.137/90, o descaminho há de ser considerado um crime material, porque exige, para a sua consumação, a efetiva ilusão, integral ou parcial, no pagamento do direito ou imposto.
A simples leitura do tipo (art. 334, caput, 2ª parte), comparando-o com o tipo do art. 1º da Lei 8.137/90, deixa transparecer que não se trata de crime formal. O núcleo "iludir o pagamento" (do art. 334) pressupõe a existência de "direito ou imposto devido", assim como o elemento "suprimir ou reduzir" (art. 1º) pressupõe a existência de "tributo".
A lei fala em iludir o pagamento e não apenas em adotar medidas materiais com essa finalidade. Serve aqui o mesmo raciocínio já empregado pela doutrina para distinguir os crimes materiais e formais tipificados na Lei 8.137/90, assinalando que os tipos penais, nos crimes tributários formais, costumam ser construídos com expressões tais como "para", "com o fim de", "a fim de" etc.
Consoante salienta José Paulo Baltazar Júnior,
E ainda que se discorde da aplicação desse raciocínio ao tipo do descaminho, entendendo-se que o verbo iludir remeteria apenas à conduta fraudulenta[12], é preciso atentar que a aplicação do princípio da insignificância, tal como veio sendo acolhida pelo STF, acabou atribuindo importância substancial ao resultado naturalístico, aspecto que soa incompatível com uma mera tipificação formal.
É lição preliminar do Direito Penal a de que, enquanto nos tipos materiais, o resultado é elemento necessário, sem o qual o crime não se consuma, nos tipos formais, eventual resultado, apesar de possível em momento posterior, é indiferente à consumação. Ora, na medida em que, ao aplicar o princípio da insignificância, a Corte Suprema vem levando em conta um resultado necessário e consistente em determinado valor mínimo do tributo que deixou de ser recolhido, é inevitável a conclusão de que o descaminho passou a ser tratado como um crime material, não se consumando sem a efetiva ocorrência desse resultado significativo. Fosse um crime formal, esse dado seria irrelevante, ou, ao menos, não teria tamanha importância na tipificação.
Em suma, ao considerar o montante equivalente do tributo sonegado como um dos elementos integrantes do tipo penal, o STF acabou condicionando a consumação do crime ao seu resultado, atestando com isso o caráter material do descaminho. Logo, na linha de entendimento daquela mesma Corte, a justa causa para a ação penal por descaminho também deve depender da existência de crédito tributário lançado em definitivo ("direito ou imposto devido"), conforme abordaremos no tópico seguinte.
5 Necessidade de prévio processo administrativo-fiscal na hipótese de descaminho
Antes de adentrarmos especificamente no tema da justa causa para a ação penal no crime de descaminho, cumpre-nos abordar, ainda que ligeiramente, alguns aspectos da fenomenologia dos crimes contra a ordem tributária, segundo o atual posicionamento jurisprudencial.
O recente entendimento do STF acerca do processamento dos crimes fiscais, tal como veio a ser consolidado na Súmula Vinculante 24, pode ser considerado um divisor de águas para a compreensão da incidência das normas penais que tratam dos tipos tributários formais e materiais, notadamente quanto à análise do iter criminis e o momento da consumação do delito, nas situações envolvendo tributos sujeitos a lançamento por homologação, em que, como se sabe, o contribuinte antecipa o pagamento (CTN, art. 150).
Urge perceber que apesar de haver concluído pela ausência de justa causa para a ação penal nos crimes tributários materiais antes do lançamento definitivo do tributo, o Pretório Excelso não avançou de modo conclusivo na discussão teórica subjacente, que havia sido levantada desde o HC 81.611/DF, sobre tratar-se (o tributo definitivamente constituído) de um elemento do tipo penal ou de uma condição objetiva de punibilidade.
Do que restou consignado na ementa daquele julgado (relator Min. Sepúlveda Pertence), o plenário limitou-se a ponderar que uma ou outra solução em nada alteraria o resultado ali proclamado, quando se concluiu que
Não obstante, o texto da Súmula Vinculante 24, ao falar que o crime "não se tipifica", parece haver adotado a linha de que seria um elemento objetivo do tipo.
Pois bem, antes desses novos ventos que sopraram sobre a Corte Suprema, apontava-se que a consumação dos crimes fiscais materiais (art. 1º da Lei 8.137/90) se dava no momento em que o contribuinte deixasse de recolher o tributo devido ou o recolhesse à menor, valendo-se de conduta fraudulenta. Sendo assim, nas situações envolvendo tributos sujeitos a lançamento por homologação, os tipos dos crimes tributários formais (art. 2º, I, da Lei 8.137/90) somente incidiriam quando a fraude tivesse sido detectada antes de efetuado o recolhimento à menor ou quando ainda não esgotado o prazo para o devido recolhimento, porque após isso já estaria consumado o crime material.
Em outras palavras, no campo tributário, os crimes formais sempre foram tratados como tentativas de cometimento dos crimes materiais, já que o legislador, ao invés de remeter a situação à regra geral de tentativa do art. 14 do CP, optou por criar tipos penais específicos, de natureza formal. Assim, por exemplo, ao falsificar um documento com potencialidade para propiciar futura redução ou supressão de tributo, o contribuinte já estaria incidindo na situação tipificada no art. 2º, I, sendo que tal incidência perdurava até o momento do recolhimento a menor ou do final do prazo para recolhimento. Se o contribuinte fosse flagrado pela fiscalização antes de efetuar qualquer recolhimento e ainda havendo prazo para tanto, estaria incurso na pena do art. 2º, I (crime formal). Quando, porém, o contribuinte fosse além, antecipando-se em recolher tributo a menor ou deixando de recolher qualquer valor no prazo legal, a situação passava a ser tipificada no art. 1º (crime material).
Nessa exegese, até então perfeitamente coerente com os institutos da teoria geral do crime, não havia solução de continuidade entre os momentos consumativos dos crimes tributários formais e materiais. O crime formal se exauria exatamente no momento em que operada a consumação do crime material, com absorção daquele por este.
Ocorre que tudo isso parece haver mudado com o atual entendimento do STF, sobretudo como extraído do texto da Súmula Vinculante 24, que ao falar em "tipicidade", terminou por criar um verdadeiro "limbo" entre os momentos consumativos dos crimes formais e materiais. Na linha defendida pelo ministro Cezar Peluso, o crime tributário material "não se tipifica" antes do lançamento definitivo do tributo, ou seja, enquanto não esgotado o processo administrativo fiscal, ainda que o contribuinte tenha recolhido valor a menor ou nada tenha recolhido no prazo legal, lembrando que nos tributos sujeitos a lançamento por homologação a antecipação de pagamento pelo próprio sujeito passivo ocorre sem prévio exame da autoridade fazendária.
Partindo dessa nova orientação, passou-se a defender que a expressão "tributo", como elemento do tipo penal, teria o mesmo significado de crédito tributário, ou seja, tributo definitivamente constituído e passível de cobrança.
Levado ao extremo esse entendimento, pode-se cair no absurdo de considerar que nenhuma das condutas anteriores ao final do processo fiscal teria repercussão criminal, o que praticamente acabaria com qualquer possibilidade de incidência dos tipos tributários formais, já que também dependeriam do esgotamento do processo fiscal para fins de aferição do elemento objetivo do tipo. Ou seja, o sujeito jamais poderia ser processado criminalmente enquanto não esgotada a discussão na seara administrativa.
Num outro extremo, defende-se a tese de que todas as condutas anteriores ao esgotamento do processo fiscal estariam incursas no tipo formal do art. 2º, I, já que não dependeriam do efetivo resultado, sendo que somente se consumaria o crime material no momento em que o contribuinte deixasse de recolher, no novo prazo assinalado pela autoridade fazendária, o tributo definitivamente lançado (quando suprimido) ou a sua complementação (quando reduzido). Mas essa posição entra em choque com o entendimento já consagrado na jurisprudência no sentido de que, uma vez não tendo sido efetuado o devido recolhimento pelo contribuinte no prazo legal (lançamento por homologação), a fraude que consubstanciaria o crime formal (meio) é considerada absorvida pelo crime material (fim), segundo o princípio da consunção.
Uma terceira posição exegética, menos extremada, mas igualmente desastrosa, considera que os crimes formais apenas se consumariam até o momento do recolhimento ou o transcurso do respectivo prazo, após o que já se avançaria no iter criminis dos tipos materiais, cuja consumação, entrementes, estaria na pendência do esgotamento da via administrativa. Ocorreria aí uma solução de continuidade entre o momento consumativo dos crimes formais e o dos crimes materiais, surgindo um espaço temporal em que o sujeito não estaria enquadrado em qualquer dos tipos previstos na Lei 8.137 (o aludido "limbo").
Nesse tormentoso quadro exegético e à falta de melhor opção de coerência, seria de bom alvitre ao menos seguir o entendimento esposado pelo ministro Sepúlveda Pertence em seu voto no HC 81.611, assimilando o lançamento definitivo não como um elemento do tipo, mas, sim, como uma condição objetiva de punibilidade, considerando então que a consumação do crime material dá-se em momento anterior à conclusão do processo administrativo-fiscal, ficando pendente apenas a verificação da punibilidade, que seria uma circunstância exterior ao crime, mas igualmente impeditiva da ação penal.
Aplicando tal consideração ao delito sob estudo, tem-se que, sendo como já dito um crime material de natureza tributária, cujo núcleo do tipo está em iludir o pagamento de direito ou imposto, a punibilidade no descaminho pressupõe que a autoridade fiscal competente constitua o crédito tributário por meio de um processo administrativo fiscal em que seja assegurada a ampla defesa e o contraditório, por coerência à linha de entendimento adotada pelo STF.
Não se trata mais de apontar o desacerto do posicionamento da Corte Maior, mas, sim, tomá-lo como premissa para o raciocínio, buscando, a partir daí, prolongar o debate jurídico sob argumentos que, numa lógica sistemática, tornem forçosa a aplicação do mesmo entendimento às hipóteses de descaminho. Nesse diapasão, apesar de o texto da Súmula Vinculante 24 fazer menção à modalidade de sonegação fiscal prevista no art. 1º, I, da Lei 8.137/90, defendemos que a mesma razão deve conferir idêntico tratamento jurídico em relação aos demais crimes fiscais materiais, em homenagem ao princípio constitucional da isonomia – uma vez que a política criminal na área fiscal tem notadamente se voltado à arrecadação como fator preponderante –, bem como aos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade, porquanto, nos casos de descaminho que já comportem a mais pesada das sanções administrativas (o confisco), tal já se revela suficiente a inibir a prática de novos delitos, bastando, para isso, que haja a devida fiscalização pela polícia administrativa.
6 Perdimento de bens como obstáculo à incidência do tipo penal do descaminho
Segundo a legislação aduaneira no Brasil, afora as situações em se procede ao desembaraço aduaneiro em zona primária[13], o Fisco deve dar início a um procedimento confiscatório.
Verificada a hipótese de descaminho, a autoridade fiscal, após apreender a mercadoria, dá seguimento a um processo administrativo que quase sempre culmina com a pena de perdimento, uma sanção administrativa prevista em norma legal (art. 105 do DL 37/66) e em regulamento aduaneiro (art. 689 do Decreto 6.759/2009), mas que acaba por impedir o próprio lançamento fiscal. Vale dizer, ao invés de simplesmente permitir a liberação da mercadoria mediante a constituição e cobrança do crédito tributário sonegado, acrescido de penalidades pecuniárias, a legislação impõe que a Receita Federal instaure, de logo, outro processo administrativo para legitimar o confisco dos bens.
Ao assim proceder, o órgão fazendário não pode lançar o tributo quando a lei prevê a expropriação de bens, os quais inclusive poderão ser objeto de alienação ou incorporação[14], ressarcindo ao Erário o que deixou de ser recolhido. Tributar, nessa situação, configuraria até mesmo um enriquecimento sem causa por parte do Estado. De fato, a importação de mercadorias, ao desamparo de guia de importação ou documento de efeito equivalente, é qualificada como "dano ao erário" punido com a pena de perdimento, consoante previsto no art. 23, I e §1º do Decreto 1.455/76, com a redação dada pela Lei 10.637/2002, bem como no art. 689 do Decreto 6.759/2009. E o "dano ao erário", por si só, não pode servir como hipótese de incidência tributária. Se a mercadoria importada ilegalmente vem a ser confiscada pela Administração, não cabe cobrança de tributo a ela referente[15]. Aliás, a mesma razão pela qual não se deve utilizar tributo com efeito de confisco (CF/88, art. 150, IV) justifica que não se deva fazer incidir tributo sobre bem confiscado.
Saliente-se que não se fala aí propriamente em "tributo", quando não houve sequer prévio lançamento. O que há, nesses casos, é uma mera estimativa do valor que poderia ter sido lançado caso tivesse havido o regular desembaraço aduaneiro, ou seja, do dano que seria experimentado pelo Erário e que é compensado pelo perdimento. Daí porque o art. 776 do Regulamento Aduaneiro estabelece que, na formalização do processo administrativo fiscal, para aplicação da pena de perdimento, a autoridade poderá indicar um "montante correspondente" àquele que "seria devido" na importação regular[16]. E essa locução "seria devido", no texto do regulamento, denota bem a idéia de que, com o confisco, nada pode ser cobrado a título de tributo.
Não por acaso que, se porventura tiver havido declaração de importação, a posterior decretação de perdimento do bem dá ao antigo proprietário o direito de pedir de volta o tributo que tenha adiantado ao fazer a declaração. Confira-se, nesse sentido, os seguintes trechos de julgados:
Como dito, o confisco de bens é incompatível com a tributação. Se houver decretação de perdimento, tem-se uma espécie de extinção antecipada da potencial obrigação tributária que sequer vem a ser constituída, pois a pena administrativa impede a incidência do tributo ou, como se prefira, a ocorrência do fato gerador do imposto aduaneiro, obstando o próprio desembaraço.
É o que se extrai inclusive do Regulamento Aduaneiro, que ao tratar do imposto de importação assim dispõe:
O texto do dispositivo revela que os bens apreendidos pela Administração Fiscal e submetidos a processo administrativo de perdimento de mercadoria[17] não sofrem a incidência do imposto de importação. A tributação só seria cabível se, na hipótese de perdimento, não houvesse meios para se apreender a mercadoria e concretizar o confisco. O mesmo se diga do imposto de produtos industrializados (IPI), cujo fato gerador na importação somente ocorre com a conclusão do desembaraço aduaneiro[18], assim como a contribuição para o PIS/PASEP-importação e a COFINS-importação.[19]
7 O perdimento de mercadoria como causa de extinção da punibilidade
Do que restou exposto no tópico anterior, a decretação de perdimento da mercadoria afasta a própria hipótese de incidência tributária, não se podendo falar em ilusão do pagamento de imposto ou direito. Logo, não se realiza o núcleo fático do tipo penal do art.334.
Forçoso reconhecer como inusitada tal exegese, se confrontada com o tradicional entendimento de que o descaminho se consumaria pela simples entrada ou saída da mercadoria no país sem a devida declaração à autoridade alfandegária[20]. Todavia, como já reiterado à exaustão no decorrer desse estudo, a interpretação aqui esposada está em perfeita consonância com o atual posicionamento jurisprudencial que condiciona a justa causa para ação penal por crime tributário material à constituição em definitivo do crédito tributário, inexistindo razão para excluir dessa categoria o delito de descaminho.
Por outro lado, mesmo ainda havendo certa resistência em se estender tal interpretação às hipóteses de descaminho, não se pode tampouco compreender a razão pela qual a jurisprudência não vem ao menos admitindo a aplicação da regra legal de extinção da punibilidade, por força do art. 9º, caput e §2º, da Lei 10.684/2003.
Ao que parece, os julgados que refutam essa possibilidade apegam-se ao fato de que a pena de perdimento constitui sanção administrativa, de natureza diversa da resposta criminal a ser cumulativamente aplicada.[21]
Ora, não se trata de questionar a natureza administrativa do perdimento, nem se defende aqui, por óbvio, que tal sanção seja suficiente a assegurar uma espécie de perdão judicial no campo penal. O que afirmamos, em coerência ao sistema normativo nos crimes tributários, é que o perdimento afasta a própria tipicidade (na linha da Súmula Vinculante 24) ou, quando menos, a punibilidade (na linha do min. Sepúlveda Pertence no HC 81.611/DF), já que impede o próprio lançamento do tributo que teria sido sonegado.
Outro argumento contrário ao nosso entendimento centra-se na ausência de previsão legal para a extinção de punibilidade nos casos de descaminho, considerando que o caput do art. 9º da Lei 10.684/03 limitou a incidência do benefício apenas aos infratores dos artigos 168-A e 337-A do Código Penal e artigos 1º e 2º da Lei 8.137/90.[22]
Sob o prisma do princípio da isonomia como garantia fundamental assegurada na Lei Maior, há de se questionar a própria constitucionalidade dessa interpretação literal e restritiva conferida ao texto legal, eis que não poderia o legislador ordinário valer-se de política criminal que absolva uns e condene outros numa mesma situação fática. Impõe-se aí uma interpretação em conformidade com a Carta Magna.
Não bastasse isso, ainda que descabida fosse a interpretação extensiva, seria o caso de recorrer-se à aplicação do argumento analógico (analogia in bonam partem), de resto defendida por quase a totalidade da doutrina penalista[23], mormente em se tratando de norma penal não-incriminadora geral.[24] No caso em tela, com vistas ao texto do art. 9º da Lei 10.684/03, se a ratio legislativa foi justamente a de extinguir a punibilidade em crimes de natureza fiscal sujeitos às mesmas consequências jurídicas, não se pode dizer que estejamos aí diante de uma norma penal incriminadora excepcional que não comporte argumento analógico.[25]
Os resistentes à tese fundamentam ainda, com amparo na legislação tributária, que o perdimento de mercadoria não poderia ser equiparado ao pagamento de tributo, na medida em que o rol taxativo das formas de extinção do crédito tributário (art. 156 do CTN) não comportaria analogia.
Apesar de aparentemente consistente, merece rechaço também esse argumento.
Como se sabe, a analogia é um recurso integrativo do direito fundado na aparência (e não na igualdade) entre situações fáticas dispostas segundo uma mesma lógica jurídica subjacente.[26] Por sua vez, a analogia aqui defendida tem eficácia restrita ao campo criminal, com vistas às causas extintivas de punibilidade, e não propriamente uma tentativa de se ampliar as modalidades de extinção do crédito tributário.
Ao empregar a analogia e decretar a extinção de punibilidade, o juiz leva em conta a aparência nas repercussões dos fatos no campo penal, sem necessariamente estar vinculado a aspectos intrínsecos de institutos do direito tributário e outras questões cujo exame é reservado à seara fiscal. Ainda que a jurisprudência venha caminhando no sentido de se reconhecer certa comunicação entre as instâncias tributária e criminal, condicionando a justa causa da ação penal à conclusão do lançamento fiscal, não se chegou (felizmente) ao ponto de negar a autonomia da instância criminal. De modo que é possível, por exemplo, um juiz deixar de condenar o réu por sonegação quando entenda que o tributo em questão revela-se inconstitucional, ainda que tenha sido lançado e esteja sendo cobrado na via administrativo-fiscal.
Portanto, não estamos aqui afirmando que o perdimento de mercadoria se iguala ao pagamento do tributo, nem o estamos tratando como uma nova modalidade de extinção do crédito tributário. Na verdade, o perdimento obsta a própria constituição do crédito tributário, dispensando posterior pagamento. Ou seja, decretado o perdimento, não há mais o que pagar e é exatamente nesse ponto que reside a aparência justificadora do emprego da analogia no campo criminal.
Já se viu que a legislação aduaneira trata o perdimento de bens como uma medida reparatória de dano ao erário, sendo que, na maioria das vezes, o valor da mercadoria apreendida é muito superior ao montante do tributo que seria devido em caso de importação ou exportação regular. Logo, não tem o menor cabimento isentar de pena aquele que paga e condenar aquele que não tem nada a pagar.
Por fim, ainda na esteira dos argumentos contrários à nossa tese, alguns seguem sustentando que o pagamento que justifica a extinção de punibilidade seria um ato de vontade espontâneo do devedor, enquanto o perdimento decorre de ato de império do Estado, contra a vontade do devedor[27], razão pela qual a jurisprudência já há muito rejeitou a equiparação entre as duas situações, considerando que o pagamento espontâneo do tributo se dava independente do posterior confisco da mercadoria (Súmula 92 do extinto TFR[28]).
Nesse ponto, é preciso ter atenção redobrada ao se examinar a legislação vigente à época em que formulada a Súmula 92 do TFR, bem como outros diplomas legais que vieram sendo editados até o advento da Lei 10.684/03.
Ao tempo da Lei 4.729/65, a extinção de punibilidade por sonegação dependia do recolhimento espontâneo do tributo antes de iniciada a ação fiscal.[29] A situação não mudou com o DL 157/67, que apenas ampliou o alcance da norma anterior de modo abranger todos os crimes tributários, mantida a condição de que o pagamento ocorresse antes da fiscalização.
Prestigiava-se, assim, o verdadeiro sentido da espontaneidade no pagamento feito pelo sonegador, que procedia movido por um intento de arrependimento eficaz antes de ser flagrado na prática da ilicitude. Nesse quadro normativo, é perfeitamente compreensível que não se pudesse equiparar a situação em que o pagamento do tributo se dava de modo espontâneo (antes da fiscalização) com a situação de perdimento decretado somente após a autuação pela autoridade fazendária.
Ocorre que, com a edição da Lei 9.249/95, o legislador optou por desvincular a concessão do benefício penal à espontaneidade do pagamento antes de qualquer fiscalização, passando a admiti-lo até o recebimento da denúncia[30], tendo a Lei 9.964/2000 mantido esse critério, inclusive quanto ao parcelamento tributário que passou a prever como causa de suspensão da punibilidade.[31]
Com a edição da Lei 10.684/03, deixou-se ainda mais de lado o aspecto de espontaneidade no pagamento, não mais se condicionando a extinção de punibilidade ao pagamento antes da denúncia, o que significa que pode ocorrer a qualquer tempo, até mesmo após a condenação criminal. Abandonou-se completamente a referida política criminal que prestigiava a espontaneidade do sonegador em reverter os efeitos da situação delituosa. Ao lado disso, a jurisprudência recente do STF veio a considerar que a tipicidade da sonegação depende da conclusão do processo administrativo-fiscal, o que reforçou ainda mais a idéia de que a extinção do crédito tributário, mesmo após o início da fiscalização, afasta a punibilidade do sonegador.
Acrescente-se que, à época em que editada a aludida Súmula 92, concebia-se como possível a cobrança de tributo cumulada com o perdimento da mercadoria, o que atualmente não é mais admitido, tendo a nossa legislação aduaneira, como já dito, afastado a hipótese de incidência tributária nos casos em que tenha havido o confisco.
Nesse novel ambiente normativo, soa despropositada a tentativa de ainda se manter a mesma argumentação que foi construída ao tempo da súmula, não mais havendo razão para diferenciar as situações de pagamento do tributo e perdimento da mercadoria sob o ângulo da espontaneidade.
Naturalmente, a exegese aqui defendida se impõe ainda mais quando o contribuinte logre obter autorização administrativa ou judicial para efetuar o pagamento do montante equivalente ao tributo e acessórios, nos casos em que a decretação de perdimento se revele uma medida desproporcional. Já há inclusive precedentes nesse sentido:
8 Conclusões
Do que acima se expôs, podemos traçar as seguintes assertivas a título conclusivo:
I) No descaminho, o bem jurídico tutelado é essencialmente a arrecadação fiscal, daí porque a jurisprudência tem admitido a aplicação do princípio da insignificância levando em conta o montante do tributo que deixou de ser arrecadado.
II) O tipo penal do descaminho pressupõe a constituição do tributo cujo pagamento tenha sido iludido pela entrada, saída ou consumo de mercadoria. Ao considerar o montante do tributo sonegado para fins de tipificação, o STF acabou condicionando a consumação do crime ao seu resultado significativo, atestando com isso o caráter material do delito.
III) Sendo um crime material contra a ordem tributária, não há justa causa para a ação penal por descaminho enquanto não consolidado o lançamento do tributo, pelos mesmos argumentos jurídicos que levaram à edição da Súmula Vinculante n. 24 do STF.
IV) A apreensão de mercadoria interrompe o despacho aduaneiro e a aplicação da pena de perdimento afasta a hipótese de incidência da norma tributária. Impossibilitada a constituição do tributo cujo pagamento teria sido iludido, não há justa causa para a ação penal.
V) Ainda que se entenda que o perdimento da mercadoria não obsta a consumação do crime de descaminho, é de se admitir, ao menos, a aplicação analógica da regra legal de extinção da punibilidade, por força do art. 9º, caput e §2º, da Lei 10.684/2003.
VI) Se, ao invés de decretar o perdimento da mercadoria, o Fisco lançar de ofício o tributo e aplicar a multa correspondente, com a conclusão do procedimento fiscal haverá justa causa para a ação penal, propiciando-se então ao contribuinte efetuar o pagamento (ou parcelamento) visando extinguir (ou suspender) a punibilidade.
Notas
[1] A atipicidade do descaminho quando há perdimento de mercadoria. Publicado em Jus Navegandi e outros sites na internet, inclusive na Revista Eletrônica da Seção Judiciária do DF, N.13, Ano II, Junho/2010. Disponível em: http://revistajuridica.jfdf.jus.br/home/ edicoes/junho10/artigo_Durval3.html
[2] Realizada em Manaus-AM, no período de 27 a 29 de junho de 2012.
[3] Francisco de Assis Toledo. Princípios básicos de Direito Penal, 5.ed., Saraiva, p.145.
[4] José Paulo Baltazar Júnior. Crimes Federais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006 p.344-346.
[5] Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal, 2007, vol.5, p. 214-216.
[6] Além de se referir aos crimes fiscais previstos na Lei 4.729/65, o art. 18, §2º do DL 157/67 também determinava a extinção da punibilidade quando a imputação penal estivesse relacionada à falta de pagamento de tributo.
[7] Súmula 560: A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido estende-se ao crime de contrabando ou descaminho por força do art.18, §2º, do Decreto-lei 157/1967.
[8] Cite-se os julgados no HC 99.594 e no HC 94.058.
[9] Não fosse o descaminho essencialmente um crime contra a ordem tributária, não se poderia sequer aplicar esse vetor, já que a jurisprudência tem afastado a incidência do princípio da insignificância nos casos em que, mesmo sendo irrisório o dano patrimonial experimentado, o tipo penal busque proteger valores não patrimoniais, tais como a fé pública. Nesse sentido, v.g, o posicionamento do STF no HC 93.251/DF.
[10] Confira-se a respeito o teor do voto do min. Luiz Fux no HC 108.731/MG, julg. 03/04/2012.
[11] Crimes federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.360.
[12] Esse foi o argumento utilizado pelo min. Ayres Britto no julgamento do HC 99.740 (STF, 2ª Turma, julg. 23/11/2010) para sustentar que o descaminho seria "um delito rigorosamente formal".
[13] Nesse caso, mediante lançamento fiscal do tributo incidente sobre os bens importados ou exportados e com aplicação de multa se detectada alguma irregularidade. Com o pagamento, a mercadoria é liberada.
[14] O art. 803 do Regulamento Aduaneiro prevê três destinações para os bens confiscados, a depender do caso: 1) alienação; 2) incorporação; 3) destruição ou inutilização.
[15] Sobre o tema assim escreve o professor Hugo de Brito Machado: "Se alguém importa mercadoria proibida, mas a importação é consumada, constatando o fato é devido o imposto de importação. A autoridade da Administração Tributária pode cobrar o imposto e não tomar conhecimento da ilicitude, que o importador não poderá alegar como excludente da obrigação tributária. Entretanto, se prefere fazer valer a proibição de importar, não será devido porque o fato, em sua objetividade, não subsistiu. Não produziu, na realidade econômica, o efeito que lhe é próprio, vale dizer, a integração daquela mercadoria na economia nacional. Por isto mesmo as autoridades da Administração Tributária, acertadamente, não cobram os impostos que seriam devidos pela importação de mercadorias nos casos de contrabando ou descaminho. Decretam o perdimento da mercadoria (...)" - "A Tributação dos Fatos Ilícitos", disponível em www.hugomachado.adv.br/estudos doutrinários.
[16] Art.776. Na formalização do processo administrativo fiscal para aplicação da pena de perdimento, na representação fiscal para fins penais e para efeitos de controle patrimonial e elaboração de estatísticas, a Secretaria da Receita Federal do Brasil poderá: (...) II – aplicar a alíquota de cinqüenta por cento sobre o valor arbitrado das mercadorias apreendidas para determinar o montante correspondente à soma do imposto de importação e do imposto sobre produtos industrializados que seriam devidos na importação.
[17] O art. 689 do Regulamento aduaneiro prevê a pena de perdimento em várias hipóteses, dentre elas quando a mercadoria estrangeira for "encontrada ao abandono, desacompanhada de prova de pagamento dos tributos aduaneiros" ou ainda quando "exposta à venda, depositada ou em circulação comercial no País, se não for feita prova de sua importação regular".
[18] Conforme o art. 238 do Regulamento Aduaneiro, o fato gerador do imposto, na importação, é o desembaraço aduaneiro de produto de procedência estrangeira. Ao lado disso, o art. 571 estabelece que desembaraço aduaneiro na importação é o ato pela qual é registrada a conclusão da conferência aduaneira. Saliente-se ainda que, nos termos do art. 570, §1º, II, a não-apresentação de documentos exigidos pela autoridade aduaneira faz com que se interrompa a conferência aduaneira, impedindo o prosseguimento do despacho aduaneiro.
[19] O art. 250 do Regulamento Aduaneiro prevê expressamente a não incidência dessas contribuições no tocante aos bens objeto de perdimento tratados no referido art. 71, III.
[20] Dentre inúmeros julgados nessa tradição, cite-se o RSE 200833000032670, TRF da 1ª Região, rel. Des. Fed. Ítalo Fioravanti, DJ 27/04/2012.
[21] STJ, HC 97.260, rel. Min. Laurita Vaz, julg. 01/04/2008; STJ, HC 70.739, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julg. 06/08/2009; TRF da 1ª, ACR 0031420-96.2007.4.01.3400/DF, rel. Des. Fed. Tourinho Neto, juiz conv. Murilo Fernandes de Almeida, DJ 16/03/2012.
[22] TRF da 1ª Região, ACR 0010920, rel. Des. Fed. Tourinho Neto, juiz conv. Murilo Fernandes de Almeida, DJ 20/09/2011.
[23] Julio Fabbrini Mirabete assinala a "aplicação da analogia às normas não incriminadoras quando se vise, na lacuna evidente da lei, favorecer a situação do réu por um princípio de equidade. Há, no caso, a chamada 'analogia in bonam partem', que não contraria o princípio da reserva legal, podendo ser utilizada diante do disposto no já citado artigo 4º da LICC". Manual de direito penal. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1988, p.52.
[24] Como assinala Luiz Regis Prado, "é quase pacífica a orientação quanto ao emprego do argumento analógico em relação às normas penais não-incriminadoras gerais (v.g., excludentes de ilicitude, culpabilidade, atenuantes). Aliás, Carrara já lecionava que as normas eximentes ou escusantes podiam ser estendidas, por analogia, de caso a caso, tendo sempre em conta que na dúvida aceita-se a doutrina mais benigna". Curso de direito penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2000, p. 101.
[25] Prado cita ainda a lição de Bettiol no sentido de que as normas eximentes excepcionais, impeditivas da analogia, somente são aquelas que "representam uma verdadeira interrupção na projeção lógica de uma norma penal". Vale dizer, "quando uma norma penal eximente se apresenta como verdadeiro desvio lógico das conseqüências jurídicas que deveriam naturalmente se seguir, porque a norma incriminadora atuou na presença de todas as condições ou circunstâncias nas quais foi chamada a atuar, a sua expansão lógica deve ser negada". Idem, p. 103.
[26] Como esclarece Sacha Calmon Navarro Coêlho, "na analogia, os fatos abduzidos da realidade formam, digamos, um conceituário com os seguintes elementos: A, B, C, D. Toda vez que um fato contendo os elementos A, B, C, D ocorrer, a norma incide (o fato foi descrito e previsto como jurígeno). Para se dar a integração analógica, teríamos que aplicar a um fato com os elementos A, B, C, mas sem o elemento D, ou com o elemento E, a norma prevista para a primeira situação. Análogo é bem parecido, nunca o igual". Manual de direito tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 359.
[27] Cite-se nesse sentido os seguintes julgados do TRF da 3ª Região: RSE 834 (rel. Des. Fed. Roberto Haddad, DJ de 21/07/98) e RSE 2660 (rel. juiz conv. Fausto de Sanctis, DJ 26/11/2002).
[28] Súmula 92: "O pagamento dos tributos, para efeito de extinção da punibilidade (Decreto-lei n. 157, de 1967, art. 18, par. 2º; STF, Súmula 560), não elide a pena de perdimento de bens autorizada pelo Decreto-Lei 1455, de 1976, art.23.
[29] Assim dispunha expressamente o seu art. 2º: "Extingue-se a punibilidade dos crimes previstos nesta Lei quando o agente promover o recolhimento do tributo devido, antes de ter início, na esfera administrativa, a ação fiscal própria".
[30] Art. 34: "Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia".
[31] Art. 15: "É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde que a inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal. (...) § 3º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia criminal".
Deixo aqui meus cumprimentos pelo conteúdo robusto e bem embasado do trabalho. O conteúdo é bastante proveitoso.
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