DÍVIDAS FISCAIS
A responsabilização dos sócios nas autuações e a jurisprudência administrativa
30 de junho de 2014, 08:38h
Por Maurício Pereira Faro e Bernardo Motta Moreira
Na prática, nas autuações fiscais, quando o auditor fiscal almeja a responsabilização de terceiros pelos créditos tributários das pessoas jurídicas autuadas, lavra os denominados "Termos de Sujeição Passiva Solidária", notificando os sócios das empresas. Em alguns casos, o termo simplesmente arrola o nome do sócio ou administrador e o cientificava da exigência tributária lançada contra a empresa, "para fins do disposto no art. 135 do CTN". A justificativa comumente apresentada é a de que, como o auto de infração foi lavrado com multa qualificada, isto é, quando a fiscalização entendeu que houve fraude, são formalizados, também, os termos de sujeição passiva solidária em face dos sócios responsáveis pela administração da empresa.
Ocorre que, nos termos do artigo 135, inciso III, do CTN, para que a cobrança do crédito tributário da pessoa jurídica seja redirecionada para a pessoa de seus diretores, gerentes ou representantes legais, obrigatoriamente, há de serem obervados seus pressupostos legais, quais sejam: que haja excesso de poder ou infração à lei, nos atos praticados.
Tais termos de sujeição passiva têm sido lavrados em desfavor dos sócios sem a comprovação da sua atuação com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatutos. Essa arbitrariedade na lavratura de tais atos administrativos acaba por mitigar o direito de defesa das referidas pessoas, como tem se manifestado o Superior Tribunal de Justiça.[1]
Ressalte-se que, interpretando a expressão "infração de lei, contrato social ou estatutos", expressa no mencionado artigo 135 do CTN, é pacífico que não é sempre que a pessoa física pode ser responsabilizada por débitos contraídos pela pessoa jurídica. A mera ausência do pagamento de tributos não pode ser caracterizada como infração à lei, contrato social ou estatutos.[2] Torna-se necessária a prova de que o administrador da pessoa jurídica tenha se beneficiado pessoalmente com a inadimplência ou tenha dissolvido irregularmente a sociedade, para haver eventual caracterização de sua responsabilidade tributária.
Diante da análise individualizada dos requisitos indispensáveis para que o responsável tributário seja executado, evidencia-se a necessidade de demonstração da prática dos atos infracionais, cabendo a produção da prova de tal situação exclusivamente à Fazenda Pública. É de toda ordem repugnável a tentativa de migração da responsabilidade da pessoa jurídica para um suposto responsável tributário sem a preexistência de uma regular investigação procedida pela autoridade administrativa competente acerca da ocorrência das situações que autorizam essa substituição.
Noutros termos, a mera afirmação unilateral do Fisco efetuada após a constituição de seus créditos tributários sobre a existência de responsáveis tributários para fins de responsabilização passiva é atitude que não tem amparo no Direito positivo, porquanto acaba por menoscabar a própria garantia constitucional da ampla defesa.
Ora, autorizado pelo princípio do inquisitivo, promove o Fisco uma constante busca pela verdade material, com o desiderato de lavrar o auto de infração e demonstrar a prática de atos infracionais, podendo-se utilizar de todos os meios de prova para tal fim.
Não se pode perder de vista que é dever inarredável do Fisco motivar, a contento, todos os atos administrativos postos a seu encargo pelo ordenamento jurídico. Cuida-se de um dever jurídico da Fazenda Pública, cuja vinculação origina-se do mais elevado patamar normativo, o da Constituição da República Federativa do Brasil, como corolário dos magnos princípios da legalidade e da tipicidade. Dever jurídico emergente da própria Carta Política — conforme artigo 5º, incisos II e XXXIX; artigo 37, caput, e artigo 93, inciso X — e não mero ônus processual, enquanto parte num determinado contencioso. Ora, o dever de motivar quaisquer atos administrativos — bem o definiu a melhor doutrina — antecede mesmo a própria existência do eventual litígio na esfera administrativa.
De fato, o descumprimento do dever jurídico de motivar o ato administrativo, ou seja, a tentativa de responsabilização de terceiros sem prova contundente e cabal importa na declaração de nulidade do referido termo.
Por oportuno, vale lembrar a diferença entre o motivo e a motivação do ato administrativo de lançamento. O motivo (ou "causa" do lançamento) será sempre único, qual seja, a ocorrência do fato imponível da obrigação ou a prática da infração tributária. Deve, pois, a Administração declarar a ocorrência desse fato.
A seu turno, a motivação é o discurso justificador do ato administrativo. Contém a enunciação dos motivos e demais pressupostos exigidos legalmente para a prática do ato. Isto é, enquanto o motivo se insere na órbita da própria estrutura do ato administrativo, a motivação diz respeito à sua validade.
Todo lançamento de ofício ou auto de infração contém motivo: a ocorrência do fato imponível (artigo 114 do CTN). E deve conter, necessariamente, a motivação: o discurso justificador, isto é: a demonstração da ocorrência desse fato.
Por isso, a motivação somente alcança seus fins por intermédio da prova, não havendo campo para presunção. É na motivação que se cuida de demonstrar a efetiva existência do motivo. O administrador tem a obrigação de provar o motivo.
Nas hipóteses de meras lavraturas de termos de sujeição passiva solidária em desfavor do sócio-administrador, sem que o fiscal autuante se preocupe em provar a infração, carece de suporte fático a autuação, por carência de motivação. Sem provas de que o gestor agiu com dolo, fraude ou simulação, em afronta à lei ou ao contrato social, sem diligências visando a constatar a gestão fraudulenta da sociedade, não se pode pretender a sua responsabilização. Ressalte-se: a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica de determinada sociedade é um ato grave e com inúmeros desdobramentos, que repercutem, sobretudo, na estabilidade dos setores econômico e financeiro de nosso país.
Muito embora ainda persistam alguns julgados e entendimentos desfavoráveis, que reafirmam os equívocos laborados pela Fiscalização, felizmente, temos conhecimento de vários acórdãos do Carf — aliás, a maioria — inadmitindo a responsabilização dos sócios-administradores, sem que, dos autos do processo administrativo, possa se extrair meios comprobatórios para tal redirecionamento.
O fundamento é de que é inaplicável a responsabilização tributária de terceira pessoa, com fundamento no artigo 128 do CTN, se não ficou demonstrada a sua vinculação com o fato gerador da obrigação tributária. Além disso, não se aplica o artigo 135, inciso III, do CTN se não for claramente comprovado pelo Fisco que a obrigação tributária é resultante de atos praticados pelos sócios com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.
Já tivemos a oportunidade de analisar a referida questão e entendemos por afastar a imputação da responsabilidade tributária aos sócios-administradores, nos seguintes termos:
No que tange à imputação de responsabilidade solidária aos administradores [...], cumpre reconhecer que não existe na legislação tributária hipótese de atribuição direta de responsabilidade solidária aos sócios administradores das pessoas jurídicas.
Nos termos da legislação em vigor, tanto nos casos do art. 124, como dos arts. 135 e 137, todos do CTN, há necessidade de comprovação de fato jurídico tributário, distinto da ocorrência do fato gerador, capaz de permitir a inclusão dos sócios e/ou administradores no pólo passivo da relação jurídica tributária.
Dessa forma, deveria a fiscalização ter constituído o fato jurídico tributário relativo ao interesse comum entre a pessoa jurídica e seus sócios-administradores, ou ter indicado a previsão legal específica em que os administradores, simplesmente pelo fato de serem administradores, poderiam responder pelo crédito tributário devido pela pessoa jurídica.
Acrescente-se que, em se tratando de atribuição de responsabilidade tributária solidária com base no interesse comum, deveria a fiscalização ter constituído tal fato jurídico, mediante a competente descrição dos fatos, corroborada pelas provas cabíveis.
A ementa restou assim redigida:
[...] RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA . SÓCIOS-ADMINISTRADORES.
Não existe na legislação tributária hipótese de atribuição direta de responsabilidade solidária aos sócios administradores das pessoas jurídicas. Nos termos da legislação em vigor, tanto nos casos do art. 124, como dos arts. 135 e 137, todos do CTN, há necessidade de comprovação de fato jurídico tributário, distinto da ocorrência do fato gerador, capaz de permitir a inclusão dos sócios e/ou administradores no pólo passivo da relação jurídica tributaria.
No caso do art. 124 do CTN, é necessária a identificação da hipótese normativa aplicável ao caso concreto: (i) o interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal as pessoas que tenham; ou (ii) a expressa previsão na legislação ordinária.
Verificada a ocorrência de interesse comum, para fundamentar a atribuição de responsabilidade solidária aos administradores, deve a fiscalização constituir tal fato jurídico no lançamento, mediante a competente descrição dos fatos, corroborada pelas provas cabíveis [...]. (Processo nº 10882.003318/2007-01, 4ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, Primeira Seção, Rel. Conselheiro Maurício Pereira Faro, sessão de 26 de janeiro de 2011).
É importante deixar claro que a Fiscalização não pode fundamentar a suposta responsabilidade do administrador indistintamente no artigo 124 ou no artigo 135, ambos do CTN, eis que tais dispositivos partem de pressupostos totalmente diferentes. Realmente, o primeiro versa sobre a sujeição passiva simultânea e o segundo sobre a transferência da responsabilidade do contribuinte para terceiro.
A pretensão de aplicação simultânea de ambos os dispositivos, sem qualquer comprovação do atendimento dos requisitos exigidos para um ou outro, já demonstra, por si só, o constante equívoco que tem ocorrido com as lavraturas de certos termos de sujeição passiva.
Ademais, o artigo 135 do CTN trata de responsabilidade pessoal e exclusiva, de modo que, ao ser invocado para justificar a exigência do crédito tributário perante o terceiro, não mais poderia subsistir a exigência fiscal em face do contribuinte.
É dizer, não há como se exigir a satisfação do crédito tributário perante a empresa e ao mesmo tempo de seu administrador invocando o artigo 135, inciso III, do CTN. Esse dispositivo tem aplicação nos casos em que o dirigente atua em benefício próprio, contra os interesses da pessoa jurídica que representa.
[1] "[...] Na execução fiscal, contra sociedade por cotas de responsabilidade limitada, incidência de penhora no patrimônio de sócio-gerente, pressupõe a verificação de que a pessoa jurídica não dispõe de bens suficientes para garantir a execução. De qualquer modo, o sócio-gerente deve ser citado em nome próprio e sua responsabilidade pela dívida da pessoa jurídica há que ser demonstrada em arrazoado claro, de modo a propiciar ampla defesa". (REsp 141516/SC, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, julgado em 17/09/1998, DJ 30/11/1998, p. 55).
"Tenho que a dívida fiscal é da sociedade. O sócio-gerente só responde por ela se ficar provado que agiu com excesso de mandato ou infringência à lei ou ao contrato social. Essa prova há de ser feita pelo Fisco" (Trecho do voto do Relator José Delgado, EREsp 100.739, DJ de 28/02/00).
[2] Esse entendimento já é, inclusive, sumulado: "o inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente" (Súmula nº 430 do STJ, DJe 13/05/2010).
Maurício Pereira Faro é advogado do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados, conselheiro do Carf, mestre em Direito pela Universidade Gama Filho e professor da pós-graduação em Direito Tributário da PUC-RJ e da Fundação Getúlio Vargas.
Bernardo Motta Moreira é advogado em Belo Horizonte; conselheiro titular da 3ª Seção de Julgamento do Carf; consultor efetivo da Assembleia Legislativa de Minas Gerais; mestre em Direito pela UFMG; professor da Pós-Graduação da PUC-Minas e do bacharelado em Direito do Centro Universitário UNA.
Revista Consultor Jurídico, 30 de junho de 2014, 08:38h