Na tarefa de garantir a conectividade das aduanas e fronteiras, com superação de riscos e ameaças à saúde e à segurança, as administrações aduaneiras têm pela frente grandes desafios. Na visão do secretário-geral da Organização Mundial de Aduanas (OMA), Kunio Mikuriya, que abriu o "Seminário OMA - Segurança da Cadeia Logística e Facilitação do Comércio: desafios a partir da Convenção de Quioto Revisada", realizado no início do mês, em São Paulo, a Aduana passa da tradicional função de fiscalização para apoiar também as negociações comerciais, papel que não poderá ser desempenhado sem o trabalho conjunto dos setores público e privado.
Durante dois dias, representantes das aduanas da América Latina, da Receita Federal do Brasil (RFB) e da OMA debateram avanços e obstáculos à adesão e implantação da Convenção de Quioto Revisada (CQR), que tem como objetivo principal a facilitação do comércio global por meio da simplificação e harmonização dos procedimentos de aduana. De acordo com o órgão brasileiro, o País cumpre hoje 95% do que foi determinado no Anexo Geral da Convenção, que reúne os procedimentos de natureza obrigatória.
Para o secretário da RFB, Carlos Alberto de Freitas Barreto, os desafios das administrações aduaneiras não podem ser superados com base em soluções exclusivamente domésticas e a cooperação entre governos e suas organizações torna-se extremamente facilitada quando as partes identificam entre seus pares princípios e regras comuns de trabalho. "No universo aduaneiro a CQR estabelece as bases para a facilitação do comércio e é uma ferramenta de referência do grupo de negociação da própria Organização Mundial de Comércio". Segundo o secretário, ao adotar padrões internacionais de processos aduaneiros cada administração apresenta seu compromisso com o comércio legítimo e a segurança da cadeia logística.
A OMA tem 177 administrações alfandegárias como membros e desde que a CQR entrou em vigor, em 2006, soma 78 países contratantes. "Sabemos que muitas regiões buscam processo de adesão para garantir a conectividade das aduanas e está claro que o Brasil esforça-se para aderir à CQR", afirmou Mikuriya.
Trajetória brasileira
De acordo com o subsecretário de Aduana e Relações Internacionais da RFB, Ernani Checcucci, o Brasil tem espaço e oportunidade para crescer e a aduana tem papel fundamental para viabilizar o processo. Entretanto, alerta para a necessidade de correções e para o fato de o Brasil ter um dos sistemas aduaneiros mais fragmentados do mundo, com diferentes agentes e anuentes. "São 27 autoridades interferindo nos processos aduaneiros. É preciso resgatar o papel da aduana como órgão centralizado de controle", ponderou.
Checcucci declarou que existem dúvidas pontuais em relação à interpretação da Convenção, mas a expectativa é solucioná-las em breve. Para tanto, a RFB conta com um grupo de trabalho dedicado às questões sobre o alinhamento da normativa interna aos procedimentos da Convenção. "São questões técnicas e pontuais, relativas a procedimentos específicos. Esperamos avançar o mais rápido e ter a matéria encaminhada para o Congresso Nacional até junho do próximo ano", anunciou.
Também na pauta da RFB estão outros modelos de controle que têm por base normas e padrões internacionais, como é o caso do SAFE e do Operador Econômico Autorizado - ou Qualificado - (OEA/OEQ), que levam em conta a segurança de toda a cadeia logística. "O OEA é um projeto que a RFB está abraçando. Entretanto, entendo que o modelo de OEA tem de ser feito num processo de cooperação e parcerias com outros países, porque o objetivo final é buscar o reconhecimento mútuo para que possa viabilizar o acesso a mercados de forma ágil, transparente e segura", explicou Checcucci em tom de crítica pelo fato de a minuta de normativa sobre o tema ter sido elaborada sem o diálogo mais profundo com os países que o Brasil pretende aplicar o conceito de OEA.
O representante da Receita considera que o Brasil também avançou nos requisitos do Protocolo SAFE, assinado em 2005 como compromisso de implantação do instrumento que pretende harmonizar informações, definir medidas de gestão de risco, inspeção não intrusiva e beneficiar empresas que cumprirem requisitos mínimos de segurança na cadeia logística.
Na opinião do secretário-geral-adjunto da OMA, Sergio Mujica, o Brasil tem realizado um "grande trabalho" nas regras de aduana, razão pela qual vê poucos obstáculos para que possa avançar na adesão da CQR. Mujica lembrou que na América Latina há apenas uma parte contratante, mas se declarou otimista pelas declarações dos diretores-gerais de aduana presentes no evento, que permitem acreditar em novas adesões no curto espaço de tempo.
Paradoxo
Embora a OMA aponte para um branco na América Latina em relação à CQR, os países da região têm sua legislação praticamente ajustada às regras, o que configura o "paradoxo da América Latina" na opinião do presidente da Academia Internacional de Direito Aduaneiro do México, Andrés Rohde Ponce.
Tal paradoxo pode ser justificado pela distinção entre a adesão e o cumprimento das regras, segundo o especialista regional acreditado OMA, no Brasil, Rosaldo Trevisan. "Aderir é juridicamente fazer parte, mas cumprir independe da adesão", comparou o especialista ao explicar que a adesão traz consigo obrigações. Ele enfatiza que aderir à convenção não significa o cumprimento imediato de tudo o que nela está acordado, uma vez que há prazo de carência de 36 meses. Por outro lado, garante a participação nos comitês e, por sua vez, a possibilidade de trabalhar para a flexibilização de temas rígidos do acordo.
Conforme Trevisan, as mudanças internas no aspecto legal já processam alterações de longa data. "A legislação vem sendo 'Quiotizada' e isso está refletido no Regulamento Aduaneiro e no Código Aduaneiro do Mercosul, que tem influência nítida da CQR". O especialista alerta sobre a necessidade de uniformização de termos para ajustá-los à linguagem internacional, como é o caso do drawback, que em outros países possui um significado diferente, e da expressão "desembaraço", que na linguagem universal seria mais adequado usar "liberação".
A atualização dos sistemas automatizados também é outra exigência, tanto por meio da janela única como pela integração de dados e programas. Além disso, é preciso evoluir na questão das parcerias entre aduana e operadores do comércio exterior. De acordo com o coordenador-executivo do Procomex, John Edwin Mein,o ajuste nos processos logísticos não será possível sem a participação do setor privado, que prepara e movimenta as cargas, e o setor público, que realiza os controles necessários.
Para os debatedores não há dúvida de que os países em desenvolvimento serão os mais beneficiados pelo crescimento do comércio exterior. "São a bola da vez, positivamente falando, e vão alicerçar o comércio. A CQR pode acentuar o processo, funcionando como um selo de reconhecimento que possibilita aos diversos países que pensam em expandir seus negócios encontrarem um lugar favorável", concluiu Trevisan.
CONVENÇÃO DE QUIOTO REVISADA
A Convenção Internacional para a Simplificação e Harmonização dos Regimes Aduaneiros (Convenção de Quioto) entrou em vigor em 1974, passou por atualizações e, em 1999, foi revisada para conferir procedimentos aduaneiros modernos e eficientes para o século 21.
Assim, a Convenção de Quioto Revisada (CQR) tem como princípios-chave a transparência e previsibilidade das ações de alfândega, padronização e simplificação de procedimentos e documentos, máxima utilização da tecnologia da informação e mínimo controle para garantir a conformidade com os regulamentos. Também propõe o uso da gestão de riscos e controles baseados em auditoria e parcerias com o setor privado.
Para o secretário-adjunto da OMA, Sergio Mujica, é importante destacar que a CQR visa à modernização de aduanas e à simplificação de procedimentos aduaneiros e é orientada para facilitar o comércio, sem descuidar do controle.
Segundo o vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos Aduaneiros (Abead), Fernando Pieri Leonardo, a CQR se propõe a oferecer certeza, segurança jurídica, previsibilidade, eficiência e eficácia para que se possa planejar e obter os resultados esperados. "A CQR tem princípios excelentes, que buscam efetivamente a integração, a cooperação internacional e a relação entre a aduana e o particular, o que é fundamental. Existem várias pessoas envolvidas no processo e que precisam pensar juntas, porque a visão da aduana, muitas vezes, é limitada a um determinado aspecto e a do particular, a outro."
Para Leonardo, será impossível realizar comércio internacional, com o volume e o ritmo apresentados, sem o trabalho de harmonização de procedimentos. Ele reconhece que a legislação brasileira está em consonância com boa parte dos princípios da Convenção, mas lembra que será preciso buscar soluções para temas conflitantes como o recurso do duplo grau de jurisdição na questão da pena de perdimento, que na sua avaliação é um dos maiores impedimentos à adesão.
O acadêmico analisa que a adesão à CQR possui três efeitos importantes, sendo o primeiro deles publicitário. "É o efeito do anúncio, ou seja, informar a comunidade do comércio internacional que o país é signatário. Algo que tem relevo, que tem efeito econômico. É um reconhecimento internacional de boas práticas."
O segundo aspecto relevante é que na OMC cada vez mais a CQR tem sido utilizada como um padrão de procedimento e a tendência é que passe a ter caráter normativo. O terceiro efeito - e talvez o mais prático na avaliação do especialista - é a melhoria da legislação aduaneira, transformando o comércio internacional em algo mais fluido, mais simples e que possa trazer um volume maior de operações com investimentos externos.
A CQR é constituída por 20 artigos, um Anexo Geral estruturado em dez capítulos e dez anexos específicos (estes de adesão facultativa pelas partes contratantes). (Edição e reportagem: Andréa Campos)
Fonte: Aduaneiras
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