quinta-feira, 29 de março de 2012

Súmula Vinculante é usada inconstitucionalmente pelo STF (Crimes Tributários)

Constituição atacada

Por Francisco do Rêgo Monteiro Rocha Júnior

Acompanhar o exercício da jurisdição constitucional faz com que, frequentemente, rememoremos a célebre noção de Ferdinand Lassale, para quem a Constituição não passa de uma "folha de papel" se ela não é defendida e reafirmada constantemente pelos fatores reais e efetivos de poder. Como principal "fator real e efetivo de poder" nessa seara, tem-se o Supremo Tribunal Federal, cuja missão é defender a Carta Magna, ainda que o seja sob as vaias da maioria, justamente para que as minorias possam ser salvaguardadas.

Contudo, o desempenho desse papel tem sido abdicado, como exemplifica o julgamento do Habeas Corpus 96.324 pela 1ª Turma da Corte Suprema. Nesse precedente, divulgado no Informativo 631 do STF, entendeu-se que não é exigível o término da fase administrativa junto à Receita Federal - na qual, por exemplo, o contribuinte pode impugnar a legalidade ou os valores cobrados pelo Fisco - para a propositura de uma ação penal pelo cometimento de crime contra a ordem tributária, como se verifica sua respectiva ementa: "(...) Versando a denúncia, folha 100 a 129, esquema a envolver empresas visando à prática de sonegação fiscal, descabe exigir, para ter-se a sequência da persecução criminal, o término do processo administrativo-fiscal. (Relator(a): Ministro Marco Aurélio, julgado em 14/06/2011). Desde então, firmou-se tal julgado como paradigma na 1ª Turma para casos semelhantes, como se verifica do HC 104325 (Relator(a): Ministro Marco Aurélio, 1ª Turma, julgado em 18/10/2011) dentre outros.

Um leitor mais apressado poderia indagar qual seria a relação entre tal decisão e a temática da "folha de papel". E poderíamos responder "nenhuma", se não estivesse em vigor no Brasil desde a data de 02 de dezembro de 2009, a Súmula Vinculante 24, assim delineada: "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo".

Ou seja, o artigo 103-A da Constituição da República, que estabelece que a Súmula Vinculante deve ser aprovada pela maioria qualificada de dois terços dos seus membros, e que a partir de então, terá efeito vinculante não somente em relação aos demais órgãos do poder judiciário, mas também à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, foi simplesmente ignorado pela Corte Maior de nosso país. Da mesma forma o foi a própria Lei 11.417/2006 que, regulamentando o referido artigo da Constituição, estabelece no § 3º do artigo 1º respectivo que também a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula com efeito vinculante dependerá de decisão tomada por dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária. Em suma, além de ter sido materialmente agredida a Súmula (seu conteúdo foi absolutamente ignorado) foi também formalmente atacada (o procedimento para alteração ou cancelamento não foi adotado, e jamais poderia sê-lo por decisão de Turma).

A inconstitucionalidade, a ilegalidade e a inobservância da Súmula Vinculante que rege a matéria chamam ainda mais atenção quando direcionamos nossa atenção para o entendimento da 2ª Turma do STF. É que esse órgão tem mantido aplicabilidade da Súmula, como se vê de Habeas Corpus julgado após a mudança de entendimento procedida pela 1ª Turma: "(...) 1. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto à necessidade do exaurimento da via administrativa para a validade da ação penal, instaurada para apurar infração aos incisos I a IV do art. 1º da Lei 8.137/1990. (...) Jurisprudência que, de tão pacífica, deu origem à Súmula Vinculante 24: "Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo". (HC 100333, Relator(a): Ministro Ayres Britto, 2ª Turma, julgado em 21/06/2011). Ou seja, havendo Súmula Vinculante sobre o tema, e não havendo questionamento da outra Turma sobre a questão, o procedimento adotado pela 1ª é ainda mais reprovável, à luz de todos os princípios formais e materiais que devem nortear o ponto.

Ainda que se possa objetar que o precedente que ora se discute tratava de outros crimes, entre os quais o de falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, corrupção, entre outros, o fato é que os crimes contra a ordem tributária tem um regime jurídico distinto, estabelecido através de Súmula Vinculante, e cuja aplicabilidade não dependia, pelo menos até o caso em referência, de o acusado não estar respondendo por outros crimes concomitantemente.

Nesse sentido, e embriago pelo embalo de chavões como "pegar o político corrupto", "condenar o empresário ladrão" ou "espantar o mal da sociedade", o STF tem contribuído para que a Constituição, tão arduamente e tão corajosamente conquistada na década de 80, esteja paulatinamente se transformado numa folha de papel, especialmente quando se trata da punição de condutas e mais especialmente, quando a punição é de "certas pessoas".

O que chama a atenção é o desapego com que ela tem sido tratada pela população, que prefere o afago do discurso imediatista e punitivista do que a preocupação com o fato de que tratar cada situação de "acordo com as circunstâncias do caso concreto", jamais se sabendo quando a lei ou a Constituição será aplicada ou não, pode ser qualquer coisa, exceto um sistema que se possa denominar de democrático.

Francisco do Rêgo Monteiro Rocha Júnior Francisco do Rêgo Monteiro Rocha Júnior, advogado criminalista, é mestre e doutorando em Direito pela UFPR, Coordenador da Pós-Graduação em Direito e Processo Penal da ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional), Sócio-fudandor do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, Professor de graduação e pós-gradução, e autor do livro "Recurso Especial e Extraordinário Criminais" publicado pela Editora Lumen Juris. OAB/PR - 29071 RG - 5.683.816-3/PR CPF - 873.297.949-53 Endereço - Marechal Deodoro, 497 - Centro - CEP. 80020-370 - Curitiba (PR)

Revista Consultor Jurídico, 29 de março de 2012

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