quinta-feira, 26 de abril de 2012

Os limites da desconsideração de personalidade jurídica

Texto publicado quinta, dia 26 de abril de 2012

Notícias


Por Heleno Taveira Torres

A constituição de pessoas jurídicas com separação patrimonial é de notável relevância para a exploração de atividade econômica. Não é uma opção dos sócios, mas uma verdadeira necessidade técnica para viabilizar empreendimentos que necessitam de financiamento de terceiros e permitir maior transparência da responsabilidade.

O nosso sistema jurídico reconhece a autonomia e a personalidade jurídica de distintos tipos societários em relação aos seus sócios e administradores e tem como diretriz a separação entre os respectivos patrimônios. Assim, a administração de qualquer sociedade, respeitada a autonomia privada de eleição do melhor tipo, enquanto expressão de liberdade de decisão dos particulares quanto à responsabilidade por dívidas e modo de relacionamento com terceiros, deve ser garantida pelo Estado em todos os seus termos, sob a égide do direito individual de organização, entabulado nos incisos XVIII a XX, do art. 5º, da Constituição.

Destarte, nos casos de separação patrimonial prevista ou autorizada por lei, a limitação de responsabilidade é vinculante, inclusive para a Administração Tributária, excetuadas as hipóteses de gestão prejudicada por ato anormal ou similar, tal como antecipa o art. 1.080, do novo Código Civil: "as deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada a responsabilidade dos que expressamente as aprovaram", o que é confirmado ainda no art. 1.016, do CC, em favor de qualquer credor e como medida de proteção da sociedade empresária, pelo qual "os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções". Regra que autoriza dirigir contra os administradores com funções de gestão, e dês que provada a ocorrência da ilicitude indigitada.

Como pauta hermenêutica, na relação entre normas de direito tributário e normas de direito privado, aquilo que não for expressamente recepcionado ou modificado pelo CTN, deve ser tacitamente reconhecido como limite aplicável em matéria tributária, na medida em que a lei tributária ordinária (desprovida da condição de "norma geral", nos termos do art. 146, III, da CF) não tem eficácia para dispor sobre responsabilidade de terceiros. Por conseguinte, aqueles tratamentos previstos no Código Civil formam os pressupostos do art. 135 do CTN, numa integração entre normas do direito privado e aquelas de direito tributário, na medida em que o cabimento de imputação da responsabilidade tributária "pessoal" aos sócios, afastando-a da sociedade, dependerá sempre da comprovação da atuação do administrador com excesso de poderes em relação a contrato social ou estatuto.

Neste regime de atribuição de responsabilidade pessoal aos sócios ou administradores, o parágrafo único do art. 1.015 aduz ainda que o excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses: I - se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; II - provando-se que era conhecida do terceiro; III - tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade. Destarte, caso não se possa provar a pertinência de alguma dessas hipóteses, torna-se inoponível a terceiros o excesso do administrador.

Por isso, o art. 135, do CTN cumpre a finalidade de imputar responsabilidade pessoal a determinados sujeitos pelos créditos de obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, como todos os demais casos de excesso de poderes nos diferentes regimes societários.[1] Para esse fim, todavia, é indispensável a prova[2]. E para a aplicação de multas ou quaisquer outras sanções, o art. 137, III, do CTN, prevê, igualmente, responsabilidade pessoal dos sócios ou administradores, limitada às obrigações surgidas a partir daqueles atos que no direito privado possam se caracterizar como "excesso de poderes" ou contrários a lei, contrato social ou estatuto.

Somente diante de provas firmes do excesso de poderes ou da contrariedade a lei, contrato social ou estatuto, a cobrança do crédito tributário (ou aplicação do auto de infração) poderá dirigir-se contra a pessoa do sócio, mesmo que os tributos sejam de pessoas jurídicas (IRPJ, PIS/Cofins etc.), caso a pessoa jurídica não tenha patrimônio suficiente.

O art. 135 do CTN não guarda qualquer equivalência com controle sobre simulação, interposição fictícia de pessoas ou de fraude à lei, que podem ser alegadas a qualquer tempo (art. 149, VII, do CTN), quando presentes justificativas para estes fenômenos jurídicos, sempre que provada a simulação ou a fraude. De fato, o art. 135, do CTN, ao não se prestar como mecanismo de superação do modelo de separação patrimonial adotado pela legislação mercantil[3], não pode ser alegado para tais fins.

Tampouco é possível confundir o emprego deste art. 135 com instrumento para cobrança de tributo por simples ausência de pagamento na data prevista para vencimento da dívida[4] (inadimplência). Como regra geral, a responsabilidade tributária há de recair necessariamente sobre o sujeito constitucionalmente pressuposto e legalmente identificado para o cumprimento da obrigação, ao que o ato administrativo deve limitar-se à identificação do sujeito passivo legítimo da obrigação tributária. Desse modo, excetuados os casos típicos de solidariedade, somente na Execução Fiscal pode-se autorizar a incidência dos efeitos da responsabilidade tributária, para alcançar patrimônio alheio, e, ainda assim, em caráter subsidiário.

Vale lembrar que a Lei de Execução Fiscal respeita os limites de atribuição de responsabilidade da legislação civil e comercial (§ 2º, art. 4º, da Lei nº 6.830/80), com as modificações daquilo que consta no Código Tributário, apenas, quanto às formas de responsabilidade distintas das pessoas ligadas ao fato jurídico tributário (art. 128, do CTN). É a sua redação: "À Dívida Ativa da Fazenda Pública, de qualquer natureza, aplicam-se as normas relativas à responsabilidade prevista na legislação tributária, civil e comercial". Neste caso, a subsidiariedade da responsabilidade tributária é a regra geral e somente quando não se verifica a existência de bens do efetivo contribuinte suficientes para suportar a dívida, cumpre acionar o responsável, que tem ainda direito de indicar bens do devedor, caso lhe sejam conhecidos.

Por isso, o art. 135 do CTN exige que a cobrança do tributo dirija-se contra a pessoa que cometeu o ilícito em face da pessoa jurídica, quando verificada a culpa segundo as provas obtidas. Confira-se:

"Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado."

Com essa disposição, afasta-se da pessoa jurídica a possibilidade de alegar práticas de excesso de poderes ou infração a contrato social ou estatuto como forma de eximir-se de obrigações tributárias; e, para o Fisco, provado o referido excesso, autoriza-se a exigibilidade do tributo contra o dirigente, no caso de impossibilidade de isso realizar-se diretamente contra a própria pessoa jurídica, ou conjuntamente.[5]

A norma do art. 135 aplica-se preponderantemente ao administrador – sócio ou não – que detenha o poder de decisão, influência e controle quanto à prática do fato jurídico tributário. Para a imputação de responsabilidade a terceiros pelos débitos da pessoa jurídica, sejam estes sócios, mandatários, prepostos, empregados, diretores, gerentes ou representantes; exige-se que a pessoa responsabilizada tenha poderes de gerência dos negócios da empresa.[6] Recorde-se que à lei ordinária não é dado instituir responsabilidade de terceiros, matéria que se encontra reservada exclusivamente à Lei Complementar. Diante disso, quando muito, a lei ordinária pode regulamentar o quanto se encontra antecipado no art. 134 ou no art. 135, do CTN.

 

A jurisprudência do STJ, com propriedade, pacificou-se no sentido de que a norma do art. 135 do CTN somente poderia ser aplicável em compatibilidade com os princípios da personalidade e culpabilidade das sanções. Como exemplo:

"TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – REDIRECIONAMENTO – RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO SÓCIO-GERENTE – ART. 135 DO CTN. 1. É pacífico nesta Corte o entendimento acerca da responsabilidade subjetiva do sócio-gerente em relação aos débitos da sociedade. De acordo com o artigo 135 do CTN, a responsabilidade fiscal dos sócios restringe-se à prática de atos que configurem abuso de poder ou infração de lei, contrato social ou estatutos da sociedade. 2. O sócio deve responder pelos débitos fiscais do período em que exerceu a administração da sociedade apenas se ficar provado que agiu com dolo ou fraude e exista prova de que a sociedade, em razão de dificuldade econômica decorrente desse ato, não pôde cumprir o débito fiscal. O mero inadimplemento tributário não enseja o redirecionamento da execução fiscal. Embargos de divergência providos."[7]

As reiteradas decisões do STJ nesse sentido deram origem à Súmula 430, da Primeira Seção, DJe 13/05/2010: "O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente." Quer dizer, o mero inadimplemento de obrigação tributária não é suficiente para configurar o ilícito exigido no caput do art. 135 do CTN.

Ao mesmo tempo, somente pode-se imputar responsabilidade tributária, com superação da separação patrimonial entre sócios e sociedade, nas hipóteses em que os sócios exerçam a gerência ou administração da sociedade na época em que ocorreu o fato gerador da obrigação tributária.

Nesse sentido, igualmente orientou-se a Jurisprudência do egrégio STJ:

"(...) 3. Os sócios somente podem ser responsabilizados pelas dívidas tributárias da empresa quando exercerem gerência da sociedade ou qualquer outro ato de gestão vinculado ao fato gerador. 4. Na hipótese dos autos, o Tribunal de Justiça estadual entendeu que o sócio, contra o qual se buscava o redirecionamento da execução fiscal, não participava da gerência, administração ou direção da empresa executada. Assim, para se entender de modo diverso ao disposto no acórdão recorrido, é necessário o reexame do conjunto fático-probatório contido nos autos, o que, no entanto, é vedado em sede de recurso especial, nos termos da Súmula 7/STJ. 5. Agravo regimental desprovido."[8]

9 Correto o entendimento, pois a imposição da responsabilidade tributária ao sócio gerente não advêm da qualidade de sócio, mas do exercício da gestão patrimonial ou administração da sociedade.

Ora, tratando-se de sociedade limitada, a execução fiscal poderá incidir contra o devedor ou contra o responsável tributário, com aplicação do art. 135, do CTN, unicamente quando o ato decorre de sócio ou administrador com gestão patrimonial comprovada (i) e este age com excesso de poder ou infração da lei, do contrato social ou do estatuto, também provada (ii), e, deste ato, resulta o crédito tributário devido (iii), mormente quando se tem o "esvaziamento" da sociedade sem sua prévia dissolução regular e sem o pagamento das dívidas tributarias (art. 134, VII, do CTN). De outra banda, na ausência de provas suficientes de excesso de poder ou infração da lei em relação de causalidade com a atividade de gestão patrimonial, nenhuma transferência de responsabilidade pode ser dirigida contra sócio de quota única ou minoritário, tampouco para empregados ou procuradores.

O emprego de presunção não é suficiente. Deveras, as presunções simples, de estrito valor probatório, são sempre carregadas de uma estrutura indiciária, na medida em que consistem numa atividade intelectual de construção de significados que parte de um ou mais indícios para qualificar um determinado fato de algum modo relacionado a tais eventos, como significação obtida.

Não há autorização constitucional para que a Administração possa desconsiderar atos ou negócios jurídicos lícitos, a norma geral do art. 149, VII, do CTN, sempre pode alcançar, com exclusividade, os atos como forma de simulação. Como bem salienta José Souto Maior Borges, "ao Direito Tributário não importa propriamente o dolo, fraude ou simulação em si, mas o seu resultado".[10] De fato, o legislador tributário, salvo nos casos de conceitos, institutos e formas relacionados com as hipóteses materiais que tenham servido para a demarcação constitucional de competências, tem plena autorização para modificar o conteúdo de conceitos, institutos e formas de direito privado[11], nos termos do art. 110, do CTN, relacionados com os atos de controle e cumprimento formal das obrigações, em face dos quais prevalece o regime do art. 109, do CTN, segundo o qual prevalecerão sempre aqueles conceitos de direito privado quando a lei tributária não trate de modo diverso.

A Fiscalização, pois, deve manter respeito ao tipo societário e exigir unicamente tributos no regime de "pessoa jurídica" da empresa, defeso pela legislação exigir impostos de "pessoa física", a qualquer pretexto, dos sócios, excetuados aqueles casos e condições para imputação de responsabilidade a terceiros.

A desconsideração da personalidade jurídica somente pode ser admitida excepcionalmente, quando há prova de simulação, como afirma Calixto Salomão:

"Na jurisprudência, fazem-se sentir fortemente as influências dessa impostação funcional-unitária da doutrina. Característico da jurisprudência brasileira é o valor paradigmático atribuído à pessoa jurídica, que faz com que a separação patrimonial seja frequentemente reafirmada e sua desconsideração só seja admitida em presença de previsão legal expressa ou de comportamentos considerados fraudulentos." [12]

Admitimos como perfeitamente possível a operação de recaracterização ou requalificação jurídica do ato, negócio ou pessoa jurídica, pois, como bem salienta Alberto Xavier[13], "esta é ainda uma operação que visa atribuir a qualificação jurídica correta a um ato ou negócio em face dos seus reais efeitos jurídicos, pela simples correção de qualificação ou denominação (nomen iuris) dada pelas partes". E, ao lado desses casos, também a desconsideração de atos ou negócios jurídicos, mediante o uso de regra geral, para o que os pressupostos da simulação tornam-se uma espécie de limites para se efetivar tal operação. Galgam a elevada condição de limites tópicos para a concretização de atos de fiscalização que pretendam culminar em qualquer forma de desqualificação de atos, negócios ou pessoas jurídicas.

Como pressuposto inafastável desse procedimento de requalificação motivada pela simulação, porém, deve ter o sujeito passivo a garantia de prévia motivação para que se possa iniciar esse procedimento, porquanto não seria aceitável que a autoridade pudesse, a qualquer título, requerer, sem maiores critérios, a abertura de procedimento para desconsideração de atos, por simples desconfiança. É preciso que a autoridade responsável pelo procedimento de fiscalização tenha fundada suspeita quanto ao agir fraudulento ou simulado do contribuinte, que servirá como motivo para a instauração do procedimento, cujo objetivo será aquele de identificar a precisa qualificação: a) do ato simulado praticado pelo contribuinte, fictício, dissimulador; b) da conduta em fraude à lei, capaz de induzir a Administração em erro; ou que se trate c) de negócio jurídico desprovido de causa. E somente quando provada a simulação dos atos, que sejam desconsiderados seus efeitos jurídicos.

 

Demonstra-se, assim, que a Administração não dispõe de autorização para qualificar como hipótese de simulação qualquer fato jurídico que lhe pareça suspeito, ao seu bel prazer e disposição de interesse. Certamente há de cingir-se aos limites de legalidade e do caso concreto. Faz-se tal ressalva como que a antecipar nossa opinião de ser defeso à Administração, por simples motivo de dúvida ou de ignorância sobre o funcionamento de certa operação, investir-se da pretensão de atribuir qualificação de negócio simulado, "aunque con el mismo se persiga una ventaja o ahorro fiscal", como bem recorda Cesar García Novoa. Não se pode aceitar, em pleno regime de Estado Democrático de Direito, no qual se resguardam os direitos de livre iniciativa e de liberdades negociais, que se tome a Administração por autorizada a desconsiderar todo e qualquer ato ou negócio jurídico fundando-se simplesmente em dúvida, ignorância ou por mera disposição de vontade de autoridade competente.

A desconsideração de ato ou negócio jurídico, fundada em simulação, não encontra, diga-se, nenhum limite na lista taxativa de direito privado tampouco na lista de crimes contra a ordem tributária. Vale-se de regra geral do art. 149, VII, do CTN. E isso porque o conceito de "simulação", para os fins sancionatórios da desconsideração, tanto pode ser quanto não ser equivalente ao conceito de "simulação" adotado para o direito privado.

A desconsideração da personalidade jurídica é instrumento que somente poderá ser usado quando presentes seus requisitos, segundo provas da simulação ou dos critérios legais, sob pena de fazer dos tipos societários conceitos relativos e desprovidos de qualquer segurança jurídica, quanto aos critérios que os guiam, como separação patrimonial, responsabilidade etc.

Na função instrumental, como a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade não o é, per si, uma sanção, ela somente poderá ser aplicada em face de fundadas provas de cometimento de ilícitos típicos ou atípicos, encobertos pelo tipo societário, os quais deverão servir de motivo para a decisão, com direito ao contraditório e ampla defesa, como meio para ulterior aplicação de sanções aos ilícitos descobertos.

A partir de 2002, com a vigência do novo Código Civil, na função de regra geral, o art. 50 trouxe dispositivo próprio para justificar a desconsideração das sociedades, in verbis: "em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica". Esta regra, portanto, autoriza o juiz, e somente o juiz, a desconsiderar a personalidade jurídica de sociedades quando em presença do pressuposto de abuso de personalidade, provado previamente, definido pelo cometimento de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

Com o dispositivo da nova lei, quando uma estrutura formal for utilizada de maneira incompatível com suas finalidades, caberá ao juiz, a requerimento do prejudicado, declarar sua insuficiência para as funções que o tipo proteja, visando a alcançar as pessoas dos sócios. Desse modo, a personalidade jurídica perde a plenitude de sua autonomia patrimonial, dantes prevista no art. 20, que ora se encontra revogado e substituído pelo art. 50, ao prescrever condições para a manutenção da separação patrimonial entre bens dos sócios e bens componentes do ente coletivo, ao que impôs duas condições bem nítidas para permitir superar a personalidade jurídica: i) desvio de finalidade (uso abusivo), confirmando nosso entendimento acerca da importância da 'causa' (finalidade) como fundamento dos atos e negócios jurídicos, e ii) confusão patrimonial.

Como demonstrado acima, ao longo de toda a evolução da ordem jurídica societária brasileira, foi mantida a coerência em relação à preservação das sociedades e garantia de separação patrimonial, segundo o tipo societário, no Código Comercial, no Código Civil de 1916, no Decreto nº 3708/19, no novo Código Civil de 2002, bem como no art. 129 da Lei nº 11.196/05, a revelar limites à desconsideração da personalidade jurídica em qualquer hipótese.

Por isso, não há novidade alguma no art. 129 da Lei nº 11.196/05:

"Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil."

Esta regra apenas reafirmou o que já estava claro em nosso ordenamento jurídico: as sociedades – mesmo quando prestam serviços de caráter personalíssimo – submetem-se ao regime societário típico, que deve ser preservado fins fiscais e previdenciários, exatamente como já previa o artigo 109 do CTN, ademais das regras tributárias ou societárias específicas.

Seja qual for a preferência hermenêutica que se adote, algo é inequívoco: a definição, o conteúdo e alcance de institutos, conceitos e formas de Direito Privado serão sempre preservadas quando, sobre estas, o Direito Tributário não disponha de modo diverso, regulando, pois, diferentemente, os seus efeitos. Por isso, os arts. 109 e 110 do CTN, numa síntese, apenas confirmam que o regime legal típico das sociedades não se altera pelo fato de haver prestação de serviços personalíssimos, a confirmar que já estava posto no Código Civil, Comercial e leis especiais.

Aliomar Baleeiro atesta a pretensão do legislador em garantir o "primado do direito privado" em detrimento das regras de direito tributário, mas limitadamente ao universo das relações entre particulares, naquilo que o direito tributário não dispusesse de modo diverso. Nas suas palavras: "o Direito Tributário, reconhecendo tais conceitos e formas, pode atribuir-lhes expressamente efeitos diversos do ponto de vista tributário".[14] Desse modo, a autoridade fazendária deve respeitar amiúde os princípios gerais de direito privado que devemos utilizar para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, tanto mais quando os efeitos tributários não sejam diversos.

Nesse sentido, a personalidade da pessoa jurídica prevalece e deve ser respeitada salvo na hipótese de simulação,[15] em que haja prova concreta do abuso da personalidade jurídica, como afirma Gustavo Tepedino.[16]

Evidente que a norma do art. 129 da Lei nº 11.196/05 não inovou, não modificou o regime jurídico já existente para as sociedades, mas apenas expressou textualmente o que antes já se via plasmado como inerente ao regime de direito privado e a todos os critérios adotados nas leis tributárias.

Conforme Roque Carrazza, sobre o art. 129 da Lei nº 11.196/2005:[17]

"A nosso ver, o dispositivo em foco, limitou-se a explicitar situação tributária que, em matéria de imposto sobre a renda e de contribuição – como pensamos haver demonstrado – sempre existiu para as sociedades civis de prestação de serviços profissionais, em caráter personalíssimo ou não, relativos ao exercício de profissão não regulamentada e, no caso daquelas de 'profissão legalmente regulamentada', mereceu tratamento diverso apenas no período compreendido entre 1988 e 1996 (v., supra, item 2.3)

 

Em outros falares, o artigo 129, da Lei nº 11.196/05, apenas esclareceu que devem ser tributadas, inclusive por meio de imposto sobre a renda e de contribuição, as sociedades civis de prestação de serviços profissionais, e não as pessoas físicas que as integram. Temos, portanto, a contrario sensu, que, em relação a estas pessoas físicas, a norma em pauta somente declarou situações de não-incidência a ela preexistentes. O art. 129 da Lei nº 11.196/05 acompanha tudo quanto já constava do Decreto nº 3708/19, do Regulamento do Imposto sobre a Renda veiculado pelo Decreto nº 1.041/94 e do art. 55 da Lei nº 9.430/96. Por isso, é admissível sua aplicação retroativa para atingir eventos praticados no passado.[18]

Por conseguinte, dado seu caráter meramente interpretativo, o art. 129 da Lei nº 11.196/2005 deve ser aplicado retroativamente, assim como o Art. 980-A, do Código Civil, autorizada a retroatividade, tudo nos termos do art. 106, I e II, do CTN.

Soma-se, ainda, o fundamento da Lei nº 12.441/2011, que introduz o art. 980-A no Código Civil, ao instituir a empresa individual de responsabilidade limitada nos casos de prestações de serviços de qualquer natureza, admitida a remuneração da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional. Diante do efeito de retroação do mais benigno nos casos não definitivamente julgados, como autorizado pelo art. 106, II do CTN, esta disposição igualmente há de ser observada nos respectivos julgamentos.

Destarte, o art. 129 da Lei nº 11.196/2005 ao prever a possibilidade de imputação de rendimentos às pessoas físicas apenas como resultado da desconsideração da personalidade jurídica do art. 50 do Código Civil, esclarece definitivamente que nenhum procedimento pode prescindir dos critérios entabulados nessa disposição do Código Civil de 2002 ou em hipóteses de simulação.

Dito de outro modo, a desconsideração da personalidade jurídica somente poderá ser admitida estritamente nos casos previstos do art. 50 do Código Civil, de abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, autoriza-se semelhante agir, sempre por decisão judicial, defeso às autoridades fiscais poderes para desconsideração da personalidade jurídica (salvo as hipóteses de simulação ou de fraude, como assinalado).

[1] ABRÃO, Nelson.  Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. 7. ed.  São Paulo: Saraiva, 2000, p. 64.

[2] "TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. SOCIEDADE ANÔNIMA. RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA. ART. 135, III, CTN. DIRETOR. AUSÊNCIA DE PROVA DE INFRAÇÃO À LEI OU ESTATUTO. 1. Os bens do sócio de uma pessoa jurídica comercial não respondem, em caráter solidário, por dívidas fiscais assumidas pela sociedade. 2. A responsabilidade tributária imposta por sócio-gerente, administrador, diretor ou equivalente só se caracteriza quando há dissolução irregular da sociedade ou se comprova infração à lei praticada pelo dirigente. 3. Não é responsável por dívida tributária, no contexto do art. 135, III, CTN, o sócio que se afasta regularmente da sociedade comercial, sem ocorrer extinção ilegal da empresa, nem ter sido provado que praticou atos com excesso de mandato ou infração à lei, contrato social ou estatutos. 4. Empresa que continuou em atividade após a retirada do sócio. Dívida fiscal, embora contraída no período em que o mesmo participava, de modo comum com os demais sócios, da administração da empresa, porém, só apurada e cobrada posteriormente. 5. Não ficou demonstrado que o embargado, embora sócio-administrador em conjunto com os demais sócios, tenha sido o responsável pelo não pagamento do tributo no vencimento. Não há como, hoje, após não integrar o quadro social da empresa, ser responsabilizado. 6. Embargos de divergência rejeitados." ERESP 100739/SP, Relator Ministro José Delgado,1ª Seção, RT 778/211.

[3] "TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. REDIRECIONAMENTO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. IMPOSSIBILIDADE. Para que surja a responsabilidade pessoal disciplinada no artigo 135, do CTN é necessário que haja comprovação de que o sócio agiu com excesso de mandato, ou infringiu a lei, o contrato social ou o estatuto. Redirecionar a execução para o representante legal da executada, a fim de aferir a responsabilidade tributária, bem como aferir se o sócio está na gerência da empresa, exige comprovação do ilícito praticado. Incidência da Súmula n. 07. Agravo regimental a que se nega provimento." AGA 492210/PR, 2ª Turma, Relator Ministro Franciulli Netto, DJ 13.10.2003, Pág. 00336.

[4 "TRIBUTÁRIO – AGRAVO REGIMENTAL – SÓCIO-GERENTE – RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA - NATUREZA SUBJETIVA. 1. É dominante no STJ a tese de que o não-recolhimento do tributo, por si só, não constitui infração à lei suficiente a ensejar a responsabilidade solidária dos sócios, ainda que exerçam gerência, sendo necessário provar que agiram os mesmos dolosamente, com fraude ou excesso de poderes. 2. Agravo regimental improvido." AGRESP 346109/SC, 2ª Turma, Relatora Ministra Eliana Calmon, DJ 04.08.2003, Pág. 00258.

[5] Cf. VEIGA JUNIOR, Marcello Uchôa da.  Responsabilidade tributária de sócios, de acionistas e de dirigentes de empresas e os princípios constitucionais da competência legislativa e da hierarquia das leis. In: VELLOSO, Carlos Mário da Silva (Coord.); ROSAS, Roberto (Coord.); AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do (Coord.). Princípios constitucionais fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva Martins.  São Paulo: Lex, 2005, p. 747-752.

[6] "Nesse dispositivo está expressamente consignado que a responsabilidade tributária nasce da realização de "atos praticados com excesso de poderes ou em infração à lei, ao contrato social ou estatutos". Apenas quando demonstrada a circunstância de que os administradores (sócios ou não) agiram, com dolo, violando seus deveres legais ou estatutários para com a sociedade, é que estes passam a ser os únicos responsáveis pela dívida tributária." WALD, Arnoldo; MORAES, Luiza Rangel de.  Da desconsideração da personalidade jurídica e seus efeitos tributários. In: TÔRRES, Heleno Taveira; QUEIROZ, Mary Elbe (Coord.). Desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária.  São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 231-257.

[7] EAg 494887/RS, Relator Ministro Humberto Martins, 1ª Seção, DJe 05.05.2008.

[8] AgRg no Ag 847616/MG, Relatora Ministra Denise Arruda, 1ª T, DJ 11.10.2007, p. 302.

[9] BORGES, José Souto Maior. Lançamento tributário, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 353.

[10] Argumentou Amílcar de Araújo Falcão, ao dizer que certas regras de direito privado não são necessariamente aplicáveis ao direito tributário: "duas razões são suficientes para demonstrá-lo. Em primeiro lugar, o Código Civil regula um ato negocial, um negócio jurídico, viciado ou maculado de simulação. Não é, como vimos, o fato gerador um negócio jurídico, senão apenas um fato jurídico, ou um fato econômico com relevância jurídica: por isso mesmo, a vontade das partes, no que tange ao seu conteúdo ou ao seu caráter valorativo, é indiferente. Logo é inoponível ao direito tributário preceito relativo, tipicamente, a atos jurídicos privados, de nítido caráter negocial". Falcão, Amílcar. Fato gerador da obrigação tributária. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 41-2. Cf. DE MITA, Enrico. Diritto tributario e diritto civile: profili costituzionali. Rivista di Diritto Tributario, Milano, 1995, n. 2, fev. 1995., p. 152; TIPKE, Klaus. Limites da Integração em Direito Tributário. Direito Tributário Atual. V. 3. São Paulo: Resenha Tributária, 1983, p. 513-522. LUPI, Raffaello. Le illusioni fiscali: risanare gli apparati per riformare il fisco. Bologna: Il Mulino, 1996. 124 p.

[11] SALOMÃO FILHO, Calixto.  A sociedade unipessoal.  São Paulo: Malheiros, 1995, p. 141.

[12] Daí Alberto Xavier afirmar, corretamente, que "a substância jurídica dos atos ou negócios jurídicos prevalece sobre a sua forma, caso com esta expressão se aluda à denominação, qualificação ou caracterização aparente que as partes deram a um ato. Mas já não merece acolhimento, no nosso direito, por incompatível com o princípio da legalidade, a prevalência da substância econômica de uma operação negocial sobre a sua substância jurídica". Xavier, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001, p. 41; Cf. BORIA, Pietro. Il principio di trasparenza nella società di persone. Milano: Giuffrè, 1996. 376 p.; REZENDE, Condorcet. The disregard of a legal entity for tax purposes. Cahiers de droit fiscal international. V. LXXIVa. Amsterdam: IFA, 1990, p. 95-118.

[13] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário brasileiro (Anotado por Misabel de Abreu Machado Derzi). 11.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, , 1999, p. 685.

[14] "A partir deste ponto de vista, pode-se afirmar que a existência da personificação está adstrita aos limites traçados pela lei para o seu funcionamento regular que não admitem, em especial, ocorrência de fraude, abuso do direito de personificação ou outras condutas reprováveis descritas. Não se deve confundir o abuso do direito de personificação com o ato ilícito, pois não são expressões sinônimas". SIMÃO FILHO, Adalberto. A nova sociedade limitada. Barueri: Manole, 2004, p.170.

[15] "À autoridade administrativa não pode ser dado qualificar, segundo seus próprios critérios, os negócios praticados por tais pessoas jurídicas prestadoras de serviços. O sistema deve ser construído de modo a privilegiar a autonomia patrimonial, em homenagem ao princípio constitucional da livre iniciativa, e buscando, evidentemente, coibir taxativamente a fraude e o abuso. No ordenamento jurídico brasileiro atual, não se mostra possível tratar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica com exceção e a desconsideração como regra, baseada em presunções de confusão patrimonial. No que concerne à matéria atinente ao direito fiscal e previdenciário, ocorrendo hipóteses de abuso, o judiciário deve ser chamado a se pronunciar. Por outro lado, se restar configurada a simulação ou fraude, autoriza-se desconsideração do ato pela autoridade administrativa, submetida, à evidência, ao posterior controle do judiciário." TEPEDINO, Gustavo. Sociedade prestadora de serviços intelectuais: qualificação das atividades privadas no âmbito do direito tributário. In: Prestação de serviços intelectuais por pessoas jurídicas: aspectos legais, econômicos e tributários. São Paulo: MP, 2008. p. 19-49.

[16] CARRAZZA, Roque Antonio. O caráter interpretativo do ART. 129, da Lei nº 11.196/05. In: Prestação de serviços intelectuais por pessoas jurídicas: aspectos legais, econômicos e tributários. São Paulo: MP, 2008. p. 245-259.

[17] Como observa Roque Carrazza: "Sendo o artigo 129, da Lei nº 11.196/05, meramente interpretativo, segue-se que retroagem seus efeitos à data da entrada em vigor das leis, que, interpretadas de modo adequado, de há muito mandavam dispensar, às sociedades civis de prestação de serviços intelectuais, tratamento fiscal e previdenciário idêntico àquele que alcança as demais pessoas jurídicas. Outro entendimento levaria à absurda conclusão de que, antes da entrada em vigor do art. 129, da Lei nº 11.196/06, o precitado artigo 55, da Lei nº 9.430/96, não havia revogado, ao contrario do que ele próprio estabelece, o artigo 2º, do Decreto-lei nº 2.397/87." CARRAZZA, Roque Antonio.  O caráter interpretativo do ART. 129, da Lei nº 11.196/05. In: Prestação de serviços intelectuais por pessoas jurídicas: aspectos legais, econômicos e tributários.  São Paulo: MP, 2008, p. 245-259.

 

Heleno Taveira Torres é advogado, professor e livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP, e membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association.

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