Jus Navigandi
http://jus.com.br
http://jus.com.br/revista/texto/22250
Publicado em 07/2012
Luciana Dias de Almeida Campos
O legislador, utilizando-se de um conceito jurídico indeterminado, optou por conferir ao STF a tarefa de conceituar a repercussão geral, a partir da análise de casos concretos, assim sobressai a importância de proceder a um estudo detalhado da jurisprudência da referida Corte, a fim de examinar como a delimitação do conceito está sendo levada a efeito, ou seja, é necessário investigar como os ministros estão examinando a presença da repercussão geral.
Assim, espera-se que, com o tempo, seja possível estabelecer com precisão, a partir das decisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento dos recursos extraordinários interpostos pelos recorrentes, o que o Tribunal entende por repercussão geral o que acarretará uma definição mais precisa do instituto[1].
Contudo, até o momento, essa expectativa está frustrada. Da análise do julgamento da repercussão geral nos recursos extraordinários observa-se que ainda não é possível delimitar uma linha precisa do que os ministros entendem por repercussão geral[2].
Isso porque os votos trazem um conteúdo pobre de definições sobre a repercussão geral, na maioria das vezes são idênticos e repetem a redação legislativa.
A seguir será feita uma análise dos recursos extraordinários examinados pelo STF desde o advento da repercussão geral até os dias atuais, procurando-se estabelecer um elo de ligação entre as decisões que analisaram a repercussão geral no que tange às matérias e às partes envolvidas, assim como o número de pessoas atingidas com a decisão, ou seja, buscar-se-á extrair do trabalho do STF uma direção que esclareça o que se entende por repercussão geral. O objetivo do trabalho não é demonstrar de forma taxativa a posição do Supremo, até porque seria impossível, ante a carga de subjetividade encontrada nos votos.
Inicialmente, cumpre informar que desde 3 de maio de 2007, quando a confecção de preliminar de repercussão geral passou a ser exigida dos recorrentes[3], até 30 de junho 2012, data da última atualização das estatísticas dos julgamentos da repercussão geral no sítio do STF, foram distribuídos no Tribunal um total de 115.229 processos contendo a preliminar e foram proferidas 560 decisões analisatórias da repercussão geral[4].
Do total de 560 processos que tiveram a repercussão geral examinada pelo Supremo, 407 tiveram a repercussão geral reconhecida, ou seja, desde o advento do instituto até 30 de junho de 2012, 72,68% dos recursos analisados pelo STF, e que foram interpostos após a obrigatoriedade da elaboração de preliminar de repercussão geral, receberam valoração positiva quanto à existência desse requisito de admissibilidade.
Das estatísticas expostas extrai-se que as matérias com repercussão geral reconhecida são maioria. Isso pode ser atribuído, também, à previsão constante no §1º do artigo 324 do Regimento Interno do STF, segundo a qual a repercussão geral presume-se presente, sendo necessário o voto de mais de 2/3 dos ministros para afastar a presunção. Assim, caso o ministro não profira seu voto, entende-se que seu entendimento é pela presença da repercussão geral. Contudo, o Relator e o primeiro ministro que discorde de seu voto (conforme decisão plenária de 28 de março de 2009) estão obrigados a expor os motivos de suas decisões.
A fim de ilustrar o que foi dito, faz-se necessário colacionar decisão em repercussão geral na qual quatro ministros se manifestaram de forma contrária ao reconhecimento da repercussão geral, enquanto apenas três se manifestaram a favor, contudo, ante a omissão dos demais componentes do Tribunal, o quorum qualificado necessário ao afastamento da repercussão geral não restou satisfeito.
Os ministros, na maioria dos votos que reconhece a existência da repercussão geral, consideram presentes a relevância e transcendência da matéria discutida quando a decisão tiver o condão de atingir um número significativo de processos. Veja-se os votos a seguir que demonstram esse entendimento:
A possibilidade da decisão causar impacto num grande número de processos em curso e, com isso, atingir uma quantidade significativa de pessoas é um argumento que se repete nos votos dos ministros, a fim de justificar a relevância e transcendência da matéria.
Merece destaque, também, os votos que reconhecem a existência de repercussão geral nos recursos extraordinários que versem sobre o mesmo objeto de ação proposta em controle concentrado de constitucionalidade. A seguir trecho do voto do Ministro Menezes Direito:
Observa-se, ainda, que as matérias que envolvem temas afetos ao direito tributário e administrativo são campeões de reconhecimento da repercussão geral, ou seja, os processos que tenham a Fazenda Pública como litigante têm merecido a atenção dos ministros do STF no reconhecimento da repercussão geral[9].
Da mesma forma, é comum os votos sustentarem a presença da relevância quando eventual decisão possa causar impacto significativo aos cofres públicos. A seguir voto da Ministra Ellen Gracie em que defende a existência de repercussão geral em controvérsia atinente à arrecadação dos municípios:
Contudo, importa salientar que a presença da Fazenda Pública no litígio, isoladamente, não pode ser considerada um fator decisório no reconhecimento da repercussão geral pelos ministros, isso porque a Fazenda Pública também figurava como parte em grande parte dos recursos que foram inadmitidos por ausência de repercussão geral.
Na verdade, a Fazenda Pública figura como parte na maioria dos processos autuados no STF. Conforme estatísticas do próprio Supremo, do segundo semestre de 2007 até o dia 30 de junho de 2012, dos 115.229 processos recursais autuados no Tribunal com preliminar de repercussão geral, 37.176 foram classificados como pertencentes ao ramo do "direito administrativo e outras matérias do direito público", o que representa 32,26% do total e faz desse ramo o primeiro no ranking de processos autuados por ramo do direito naquela Corte. Ademais, o ramo do direito tributário corresponde a 16,11% dos processos recursais distribuídos, além dos demais casos que a Fazenda Pública está presente na demanda e não se enquadram nesses dois ramos[11].
Observa-se ainda que o assunto mais presente nos processos que chegam ao STF é classificado como "DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO | SERVIDOR PÚBLICO CIVIL | REAJUSTES DE REMUNERAÇÃO, PROVENTOS OU PENSÃO", ocupando assim o 1º lugar na lista dos 10 assuntos mais recorrentes no Tribunal, com 1.419 processos recursais distribuídos tratando desse assunto, do segundo semestre de 2007 até 30 de junho de 2012.
Além do que os 7º, 8º, 9º e 10º lugares no ranking dos assuntos mais recorrentes também são ligados a esse ramo do direito, são eles, respectivamente: INTERVENÇÃO NO DOMÍNIO ECONÔMICO | EXPURGOS INFLACIONÁRIOS / PLANOS ECONÔMICOS | POUPANÇA; SERVIDOR PÚBLICO CIVIL | SISTEMA REMUNERATÓRIO E BENEFÍCIOS | GRATIFICAÇÃO INCORPORADA / QUINTOS E DÉCIMOS / VPNI; MILITAR | SISTEMA REMUNERATÓRIO E BENEFÍCIOS | GRATIFICAÇÕES E ADICIONAIS; SERVIDOR PÚBLICO CIVIL | SISTEMA REMUNERATÓRIO E BENEFÍCIOS, somando juntos 1.953 processos[12].
Portanto, é natural que o número expressivo de processos que chegam ao Supremo tendo como parte a Fazenda Pública acabe por representar também um número significativo de decisões de repercussão geral onde a Fazenda Pública figure como litigante.
No que tange às decisões que afastam a existência da repercussão geral, observa-se que o STF tem afastado do seu crivo as controvérsias que apenas reflexamente representam ofensa à Constituição Federal, caracterizando-se como matérias infraconstitucionais. A título de exemplo:
Atente-se para a seguinte peculiaridade do julgamento acima exposto: não houve votos suficientes (maioria qualificada de 2/3) capazes de afastar a presunção de existência de repercussão geral, haja vista que quatro ministros não se manifestaram (e a omissão é contabilizada como reconhecimento da repercussão geral) ao tempo em que dois ministros acompanharam o voto do Ministro Marco Aurélio – que se posicionou de forma contrária ao voto da Ministra Relatora Cármen Lúcia, e por esse motivo estava obrigado a explicitar os motivos de sua decisão – e entenderam presente a repercussão geral no conflito. Portanto, num julgamento de repercussão geral normal seriam 7 votos a favor da existência do requisito o que não afastaria a exigência de maioria qualificada para a sua negação.
Entretanto, no caso em apreço a Ministra relatora Carmen Lúcia entendeu que a querela trazia em seu bojo matéria infraconstitucional, e nesses casos torna-se necessária a aplicação da regra contida no §2º do art. 324 do Regimento Interno do STF, introduzida pela Emenda Regimental nº 31/2009, a qual reza o seguinte:
Assim sendo, pelo fato da Ministra Relatora ter entendido que a ausência da repercussão geral se verificou pela ausência de matéria constitucional a ser discutida, encontrando-se o conflito no campo de matéria infraconstitucional, ao contrário do que ocorreria nos demais julgamentos de repercussão geral, os votos omissos dos demais ministros foram considerados contrários à existência do requisito.
Nessas situações observa-se uma inversão do sistema da repercussão geral. Ora, deve-se perquirir a existência da repercussão geral quando se tratar de matéria constitucional. Se a matéria for infraconstitucional, não há o que se cogitar acerca da presença do requisito de admissibilidade.
Portanto, é tecnicamente equivocado dizer que o recurso não foi conhecido por ausência de repercussão geral, em razão da matéria ser infraconstitucional. Contudo, o Supremo publicou em suas estatísticas que 112 processos tiveram a repercussão geral negada por esse motivo, o que equivale a 75,17% do total de processos com repercussão geral não reconhecida[13].
Nessa esteira, quando os ministros concluem que o objeto do recurso trata de matéria infraconstitucional, a atuação do Supremo resta prejudicada, sendo desnecessária a averiguação da presença da relevância e transcendência da matéria discutida.
Além disso, da leitura dos julgamentos que concluíram pela inexistência da repercussão geral, pode-se constatar que é freqüente na motivação do ministro Relator o argumento de que a matéria discutida atinge número restrito de pessoas. Pode-se mencionar como exemplo, o seguinte trecho do voto de relatoria do Ministro Menezes Direito:
Essa questão, relativa à alegada possibilidade de extensão da forma de cálculo da COFINS e da contribuição ao PIS fixada para as empresas que realizam a comercialização de veículos usados para as pessoas jurídicas que atuam no ramo industrial, não possui repercussão geral a ensejar o julgamento do recurso extraordinário por esta Corte. A supremacia do princípio da igualdade tributária não será afetada pelo caso em tela, de modo que o conflito deduzido em juízo pela parte, qualquer que seja a sua solução, não repercutirá política, econômica, social e, muito menos, juridicamente na sociedade como um todo, limitando-se, no máximo, ao âmbito da atividade da recorrente[14].
Assim, pode-se concluir que os ministros estão usando como critério para aferição da transcendência da matéria litigiosa o número de pessoas atingidas pela decisão.
Por fim, importa registrar que a análise da jurisprudência do STF no julgamento da repercussão geral não permite, até o momento, traçar uma definição precisa do que o Tribunal entende como repercussão geral. Primeiro, porque apenas o relator está obrigado a proferir seu voto na forma escrita, assim como o primeiro ministro que divergir de seu voto. Depois porque os votos dos ministros não trazem em seu bojo uma linha de pensamento que permita aos profissionais do direito aferir o que o Supremo entende por repercussão geral.
BIBLIOGRAFIA
COELHO,Glaucia Mara. Repercussão geral: da questão constitucional no processo civil brasileiro. 1 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009.
FREITAS, Marina Cardoso. Análise do julgamento da repercussão geral nos recursos extraordinários. 2009.124f. Dissertação (Pós-graduação em processo civil) – Escola de formação da sociedade brasileira de direito público. São Paulo.
BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 31 dez. 2004. Seção 1, p. 9.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI-QO- 664567. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2525122>. Acesso em: 17/07/2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 594435-2/SP. Rel Ministro Marco Aurélio. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605500>. Acesso em: 17/07/2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 564413-8/SC. Rel. Ministro Marco Aurélio. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=501274>. Acesso em: 17/07/2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 596478-7/RR. Rel. Ministra Ellen Gracie. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=603403>. Acesso em: 17/07/2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 592616-8/RS. Rel. Ministro Menezes Direito. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557631>. Acesso em: 17/07/2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 591033-4/SP. Rel. Ministra Ellen Gracie. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=577017>. Acesso em 17/07/2012
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 585740-9. Rel. Min. Menezes Direito. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2615426>. Acesso em: 30/06/2012.
Notas
[1] COELHO,Glaucia Mara. Repercussão geral: da questão constitucional no processo civil brasileiro. 1 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009, p.97.
[2] FREITAS, Marina Cardoso. Análise do julgamento da repercussão geral nos recursos extraordinários. 2009.124f. Dissertação (Pós-graduação em processo civil) – Escola de formação da sociedade brasileira de direito público. São Paulo. p.14-15.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI-QO- 664567. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2525122>. Acesso em: 17/07/2012.
[4] Dados disponibilizados no site do STF e atualizados até 30 de junho de 2012. <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGeral&pagina=numeroRepercussao>. Acesso em: 17/07/2012.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 594435-2/SP. Rel Ministro Marco Aurélio. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605500>. Acesso em: 17/07/2012.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 564413-8/SC. Rel. Ministro Marco Aurélio. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=501274>. Acesso em: 17/07/2012.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 596478-7/RR. Rel. Ministra Ellen Gracie. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=603403>. Acesso em: 17/07/2012.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 592616-8/RS. Rel. Ministro Menezes Direito. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557631>. Acesso em: 17/07/2012.
[9] <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/listarProcesso.asp>. Acesso 25/06/2011.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 591033-4/SP. Rel. Ministra Ellen Gracie. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=577017>. Acesso em 17/07/2012.
[11] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGera
l&pagina=numeroRepercussao> . Acesso em: 17/07/2012.
[12]Disponível em:< http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGeral &pagina=numeroRepercussao>. Acesso em 16/07/2012.
[13] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussao Geral&pagina=numeroRepercussao>. Acesso em 16/07/2012.
[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 585740-9. Rel. Min. Menezes Direito. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2615426>. Acesso em: 30/06/2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário